CONTO: O Jardineiro do Imperador (por Fernando Fontana)

Assim que adentrou a casa de chá, Okada Ichiro avistou sua proprietária e dirigiu-se até ela. Carregava o elmo em uma das mãos e trajava armadura completa, preta com detalhes em verde, as cores do Clã Okada. Os presentes se inclinaram e se afastaram em sinal de respeito, enquanto ele se aproximava de madame Keiko.

– Onde está ele? – Questionou em tom nada amistoso.
– Ele o aguarda em aposento reservado. Por favor – indicou a direção – acompanhe-me, samurai Okada.

Keiko sabia que não era sábio irritar Ichiro, seu temperamento era muito bem conhecido, e ela, assim como todos os que se encontravam sob a proteção do castelo Okada, temia pelo futuro. Atravessaram o corredor e abriram a última porta, revelando um homem de estatura baixa, cabelos grisalhos e vestes surradas; estava sentado, bebia seu chá e pareceu não perceber a presença de ambos.

– Deixe-nos – ordenou Ichiro, sendo prontamente atendido por Keiko.
– É o senhor Kimura? – Questionou.
– Sim – o homem sorveu calmamente seu chá antes de continuar – e você, suponho, é o filho mais velho do nobre Okada Takashi. Ichiro, estou correto?
– Nós o aguardávamos no castelo.
– Sim, eu sei, e certamente para lá eu iria, mas antes, havia tempo para um pouco de chá.
– Há chá no castelo.
– Sem dúvida, mas tão bom quanto este? Oh, muito difícil, este é o melhor que já provei.
– Não vim até aqui falar sobre chá.
– Não? Então, diga, sobre o que veio falar?
– Você não é samurai!
– Muito observador, não, eu não sou.
– Imaginei que o Xogum enviaria um samurai para tarefa de tamanha importância.
– Seria o normal, no entanto, o Xogum acredita que minhas habilidades serão mais úteis nesta situação em particular.
– E de qual maneira você serve ao Xogum?
– Sou jardineiro do Imperador, o Xogum requisitou meus serviços.
– Está zombando de mim?
– Oh, eu jamais faria isso, sou o atual responsável pelos jardins do Castelo do Imperador.
– Um jardineiro? Por que o Xogum enviaria um jardineiro para me nomear Daimio?
– O espanto é compreensível, mas devo humildemente corrigi-lo, ele não me enviou para nomeá-lo Daimio.
– A mensagem que recebi era clara, dizia que o senhor Kimura nomearia o novo regente destas terras.
– Sim, a mensagem está correta, e eu sou o senhor Kimura, mas ainda não decidi se você deve governar.
– Talvez eu não esteja lhe compreendendo corretamente, o que você disse?
– Ainda não decidi se você deve substituir seu pai como novo Daimio.
– Como se atreve? Minha família tem servido lealmente ao Imperador por gerações, sem o arroz que sai destas terras, o Império passaria fome, e sem nossos samurais, o Xogunato mal se sustentaria.
– Você fala a verdade, Ichiro, mas também é verdade que pairam sérias dúvidas sobre sua capacidade de governar. Há quem diga que seu temperamento é perigoso, e que começaria uma guerra com a mesma facilidade que uma nuvem começa a chuva.
– Pouco me interessa o que dizem, o que importa é a tradição – disse Ichiro com a raiva transparecendo – é meu direito sagrado.
– Entendo, neste caso, devo retornar e informar ao Xogum sobre seu descontentamento com a falta de respeito pelas tradições – Kimura bebeu o último gole de chá e pousou a xícara sobre a mesa.

Ichiro apertou com força a empunhadura da katana que se encontrava em sua bainha; jamais esperou por tamanha ofensa, mas sabia que se escolhesse mal suas palavras, estaria condenado.

– Minha espada, assim como minha vida, está a serviço do Imperador.
– Bom, muito bom, sábia decisão.
– Se não eu, então quem governaria as Terras Férteis?
– Você tem um irmão gêmeo, não tem?
– Um irmão que nasceu depois de mim.
– Sim, cinco minutos depois, mas o Xogum acredita que este tempo não é suficiente para determinar quem deve governar.
– Em combate, eu sou muito superior ao meu irmão, pergunte para quem quiser.
– Felizmente, caro irmão – disse um jovem com aparência idêntica à de Ichiro e que acabara de adentrar o aposento – o Bushido não é apenas o caminho da espada, mas também o da pena.
– O caminho da pena, você diz, quando os cães do Clã Kumazawa atacaram nosso pai, de que serviram os livros que ele leu? Tivesse dedicado mais tempo à espada, talvez estivesse entre nós.
– Não, irmão, não foi a falta de habilidade com a katana que condenou nosso pai, ele foi vítima de uma emboscada.
– Kasuo está certo – disse Kimura – já vivi muitos invernos, e em todo esse tempo, conheci poucos homens tão letais com uma katana quanto seu pai. O que o matou não foi a lâmina de um oponente, mas o veneno que ela carregava.
– Veneno – grunhiu Ichiro – arma de mulheres e covardes.
– Arma de ninjas – completou Kimura.
– Que seja, diga-nos, senhor Kimura, jardineiro do castelo do Imperador, como pretende decidir quem deve governar?
– Eu apreciaria mais alguns dias para refletir, mas as Terras Férteis já ficaram tempo demais sem um Daimio. Eis o que penso, o Xogum me incumbiu de outra importante tarefa, e eu peço que me auxiliem nela; observarei como lidam com o assunto, depois, direi quem governará.
– Então será assim, uma única tarefa determinará o novo Daimio? – Ichiro questionou com desdém.
– Melhor do que apenas cinco minutos, não acha? – Respondeu Kimura.
– E qual seria esta tarefa? – Perguntou Kasuo.
– O Xogum foi informado sobre a presença de membros do Clã Kumazawa nos arredores do castelo Okada. Suas ordens foram claras, todos devem ser caçados e exterminados por conspirarem contra o Imperador.
– Kumazawa, aqui? Impossível! – Afirmou Ichiro – desde que sua vergonhosa associação com as sombras foi descoberta, matamos todos.
– Ninjas são conhecidos por sua habilidade em se esconder, não é difícil imaginar que alguns tenham escapado.
– De quantos estamos falando? – Perguntou Kasuo.
– Provavelmente três.
– Dez dos nossos melhores samurais me aguardam lá fora, são mais do que suficientes para esta tarefa – disse Ichiro.
– Não duvido, mas a casa onde se localizam fica no limite da vila, dez samurais chamarão demasiada atenção. Pelo que sabemos, são ninjas de baixa patente, nenhum mestre, creio que os filhos de Okada Takashi são mais do que suficientes para confrontá-los, estou correto?
– Então iremos apenas nós três? Melhor, assim terá oportunidade de me ver em combate – disse Ichiro.
– Muito bom – entusiasmou-se Kimura – tenho certeza de que será uma oportunidade única. Agora, tenho aqui um presente – ele recolheu um volume enrolado em panos que se encontrava ao seu lado. Lentamente o desembrulhou, revelando seu conteúdo, uma katana embainhada, sua magnífica empunhadura terminando em uma cabeça de dragão com joias verdes incrustradas no lugar dos olhos, denunciando seu nome: a Katana de Jade – Sete Katanas foram entregues para sete samurais. Sete lâminas lendárias forjadas pelo próprio Imperador entre a realidade e o sonho, poesia e morte fundidas com perfeição para proteger seu povo. Esta foi a terceira delas, e seu fogo transformará em cinzas os inimigos do Império do Sol Nascente. Agora, me digam, jovens Okada, para qual de vocês devo conceder a honra de usá-la no confronto que está por vir?

Ichiro avançou em direção à espada e esboçou o princípio de uma resposta, porém, hesitou; em seu íntimo, sabia que a katana deveria ser sua, mas também pensou que governaria as Terras Férteis até o fim de seus dias, morrendo de forma honrada, em defesa do Império, e isso já não era mais uma certeza. Queriam provas de sua capacidade, como se todo o sangue derramado em campo de batalha não fosse o suficiente.

– Dê a katana para meu irmão – Kasuo rompeu o silêncio e atraiu o olhar de surpresa de Ichiro.
– Tem certeza? – Perguntou Kimura.
– Meu irmão é mais habilidoso com uma espada do que eu, deixe que ele a use – confirmou Kasuo.
– Então está decidido, eu lhe concedo a honra de portar temporariamente a espada que um dia foi de seu pai. Use-a com sabedoria – estendeu a katana que foi recebida com todo o respeito por Ichiro.
– Eu farei por merecer essa honra – limitou-se a dizer.
– Assim espero. Eu planejava agir apenas amanhã, mas não vejo por que adiar nossa missão, e já que não é prudente enfrentar ninjas após o anoitecer, creio que devemos partir imediatamente – Kimura abandonou o aposento, seguido pelos gêmeos Okada.
Ao deixarem a casa de chá, os três se depararam com os samurais do Clã Okada, todos trajando suas armaduras.
– Isamu – chamou Ichiro. Imediatamente o mais alto dos samurais tomou a frente dos demais.
– Leve os homens de volta ao castelo, eu e meu irmão temos assuntos a tratar.
– Sim, senhor – o olhar do samurai caiu sobre a espada que Ichiro carregava – esta é a katana que penso ser?
– Sim, Isamu, ela retornou para nós, agora, leve minha antiga katana, não precisarei mais dela.
– Isso significa que é o novo Daimio?
– Não, ainda não – Ichiro respondeu contrariado – o Xogum tem dúvidas sobre quem deve governar, se eu ou Kasuo.
– Kasuo, mas…
– Não é o momento para discutirmos isso, retorne ao castelo, eu o encontrarei em breve.
– Tem certeza de que não necessitará de nós?
– Absoluta!
– Vocês ouviram – gritou Isamu – de volta para o castelo – os samurais montaram em seus cavalos e partiram, erguendo uma nuvem de poeira e deixando o jardineiro e os gêmeos para trás.
– Bem, devemos acabar logo com isso. Senhor Kimura, mostre-nos onde se escondem os malditos Kumazawa, desejo atravessá-los com a katana que foi de meu pai.
– Seu desejo logo será atendido, mas temos alguma estratégia além da sede de sangue?
– Atacamos rápido, caímos sobre eles sem que tenham tempo para perceber o que está acontecendo. Temos o elemento surpresa, devemos utilizá-lo – disse Ichiro.
– Ah, somente sede de sangue, então. Pensa o mesmo, Kasuo?
– Lá se vão dez bons samurais – apontou para os cavalos distantes – que dispensamos por chamarem demasiada atenção. Agora, nós, herdeiros do Clã Okada, vamos atravessar a vila, com armadura e a Katana de Jade. Não seremos sutis.
– Entendo – Kimura coçou o queixo – bem pensado. O que sugere?
– Que usemos tática semelhante à do inimigo, vamos nos disfarçar, venham comigo – Kasuo entrou novamente na casa de chá e procurou por madame Keiko – a senhora – ele disse – sempre foi serva leal de meu pai, agora, necessito de um favor e de sua discrição, posso contar com ambos?
– As lágrimas que derramei pela morte de seu pai não foram falsas, você deve saber. Diga, Kasuo, o que precisa? Se estiver ao meu alcance, providenciarei.
– Não é muito, dois velhos kimonos, parecidos com o que nosso amigo, o senhor Kimura está usando, vê?
– Sim, vejo, tecido grosseiro, posso conseguir. Do que mais precisa?
– Chapéus de palha e pano para escondermos nossas katanas.
– Será feito; por favor, retornem ao aposento, não irá demorar.
Logo após Keiko se afastar, Ichiro perguntou:
– Confia nela?
– Nosso pai confiava – respondeu Kasuo.
– Nosso pai confiava demais nas pessoas, e agora está morto.
Kasuo não respondeu, aguardou em silêncio o retorno de Keiko com as roupas.
– Elas fedem – reclamou Ichiro enquanto as vestia.
– Foi o que consegui arrumar em tão pouco tempo; pense positivo, o cheiro ruim torna o disfarce mais convincente. Vejam se servem, se for necessário, posso pedir para uma das meninas fazer os ajustes – disse Keiko.
– Bom, enquanto os dois se vestem, aproveitarei para tomar mais um pouco de chá – falou Kimura, abandonando o aposento. Ele e Keiko se afastaram da porta, para não serem ouvidos.
– É bom revê-lo, mestre Kimura.
– Também senti saudades, Keiko.
– Já sabe qual dos dois será Daimio?
– Não, Keiko, é uma tarefa complexa, tenho um caminho traçado em minha mente, mas ainda não sei se é o correto.
– Perdoe, mestre, mas pensei que seria escolha simples. Ichiro é impulsivo demais, arrogante demais, Kasuo é mais equilibrado, mais parecido com o falecido Daimio.
– Se bem me lembro de seu treinamento, Keiko, você era uma de minhas alunas mais impulsivas. Sim, o temperamento de Ichiro deve ser considerado com muito cuidado, mas talvez tenhamos uma joia bruta e eu preciso ver além das aparências. Acalme-se, ainda hoje, você conhecerá seu novo senhor.
– Que assim seja, a morte do Daimio de Jade foi um duro golpe para todos, ele era amado e temido na mesma proporção.
– Sim, rara combinação, eu apreciava nossas conversas, um bom homem, um homem honrado. Diga, a jovem está vigiando a casa onde se encontram os Kumazawa?
– Eu a enviei, conforme suas ordens. Ela entrará em contato da maneira costumeira.
– Excelente, informarei ao Xogum que você continua a servi-lo bem. Agora, por favor, um pouco mais de chá.
Mal terminou sua bebida e Kimura avistou os gêmeos em suas novas roupas, as katanas devidamente embrulhadas e escondidas da vista de todos.
– Bah – disse Ichiro – parecemos dois malditos Ronins.
– Ronins não se preocupam em esconder suas katanas, vocês estão mais para viajantes.
– Um samurai não deveria se esconder, não é digno!
Kimura sorriu – Você ainda é jovem, com o passar dos anos descobrirá que nem sempre um samurai pode se dar ao luxo de agir como samurai.
– O que quer dizer com isso? Que eu devo abrir mão de minha honra?
– Quero dizer que já presenciei um importante samurai se disfarçar de gueixa para invadir um castelo e assassinar um dos inimigos do Xogum.
– Prefiro cometer seppuku!
– Esqueça o seppuku, sua honra e virilidade estarão à salvo nesta missão.
Saíram pelos fundos e seguiram o caminho mais curto; os disfarces foram úteis, ninguém na vila seria capaz de imaginar que entre aqueles três viajantes, estivesse o futuro Daimio e senhor do castelo Okada.
– O povo – falou Kasuo.
– O que tem ele? – Perguntou Ichiro.
– Os camponeses parecem preocupados, dá para ver em seus semblantes.
– Preocupados sem razão, o Clã Kumazawa está praticamente extinto, a paz reinará novamente.
– Disso, eles sabem – falou Kimura – mas não é o Clã Kumazawa que eles temem.
– Não? Então, o que?
– Eles temem os ventos da mudança, os camponeses são sempre os primeiros a sofrerem quando um novo governante não compreende ou não se importa com suas necessidades.
– Mostrarei a todos que posso governar.
– Seria bem mais convincente, jovem Ichiro, se sua fala não viesse impregnada de ressentimento. Parem aqui, vamos aguardar!
– O que estamos aguardando, senhor Kimura? – Perguntou Kasuo.
– Informação – respondeu olhando para o céu.
– A casa está logo ali, se perdermos tempo demais, irá anoitecer – disse Ichiro.
– Paciência, jovem, não deve demorar. Ah, ali, vocês conseguem ver? – Kimura apontou para o céu.
– Não vejo nada – respondeu Ichiro.
– Nem eu – disse Kasuo, forçando o olhar, o que deveríamos…espere, o que é aquilo?
– É a mensagem que estamos aguardando – um pequeno origami em formato de garça se aproximou pelo ar, Kimura estendeu a mão e ele pousou nela, moveu-se por alguns instantes como se estivesse vivo, até que finalmente parou de se mexer.
– Magia – disse Kasuo.
– Então é isso, você é um feiticeiro! – Exclamou Ichiro.
– Sei um truque ou dois, mas o origami e sua magia não me pertencem – ele desdobrou o papel até que pudesse ler uma pequena mensagem em seu interior – Há uma mulher na casa neste momento, os três ninjas estão fora, mas devem retornar em breve – atirou o papel no ar e ele se incendiou sozinho, espalhando suas cinzas.
– Uma mulher? Ela também faz parte do Clã Kumazawa? – Perguntou Kasuo.
– Provavelmente – respondeu Kimura – o que acham que devemos fazer?
– Se a mensagem é confiável, estamos em vantagem, eu vou pela frente, Kasuo por trás, dominamos a mulher, fazemos com que fale, esperamos os três e os pegamos de surpresa. Vamos!
– Espere! – Kimura barrou-lhe o caminho – já percebeu que você responde tudo que lhe é perguntado sem refletir por um segundo que seja? Vejo dúvida no semblante de Kasuo, diga, jovem, o que está pensando?
– E se não forem quem pensamos que são?
– Não confia em nossos informantes? – Kimura questionou com um sorriso.
– Não seria a primeira vez que espiões se enganam.
– Não, não seria, mas duvido que eles tenham errado tanto assim. É quase certo que sejam ninjas e que a mulher esteja envolvida.
– Quase não me basta, se massacramos uma família inteira sem provas, iremos apenas reforçar os temores do povo com relação ao novo Daimio, seja eu ou meu irmão.
– Respeito sua preocupação e Ichiro também está certo sobre aproveitarmos enquanto os ninjas estão ausentes. Se quisermos que ela se revele, temos que lhe dar recompensa valiosa, algo que a faça se arriscar. Ichiro, desembrulhe sua Katana, deixe ela visível.
– Não entendo, ela certamente reconhecerá a Katana de Jade – disse Kasuo.
– Se for camponesa, provavelmente, se for Kumazawa, certamente – confirmou Ichiro.
– Peixe grande se pega com boa isca, jovens Okada – disse Kimura, tomando o rumo da casa.
Ao chegarem, notaram que uma mulher com não mais do que trinta anos também se aproximava da porta com uma cesta repleta de batata doce.
– Senhora – chamou Kimura.
– Sim? – Ela parou e olhou assustada, pouco antes de abrir a porta.
– Desculpe incomodar, mas estamos à serviço do Xogum, em importante investigação, seria possível conversarmos por alguns minutos?
– Vocês possuem alguma identificação? – Ela perguntou desconfiada.
– Certamente que temos. Qual o seu nome?
– Akemi.
– Bem, Akemi, isto deve tranquiliza-la – Kimura lhe entregou um pequeno pergaminho – como pode ver, é o selo imperial. Agora, se não se importa, podemos entrar?
– Sim, claro, perdoe pela hesitação, tem sido tempos difíceis, o senhor deve saber.
– Estamos aqui para garantir sua segurança – disse Kimura enquanto todos adentravam a casa – temos razões para acreditar que ainda podem haver membros do Clã Kumazawa nesta região.
– Kumazawa? Pensei que estivessem todos mortos – Akemi colocou os vegetais sobre a bancada de madeira.
– Se não estão, logo estarão – disse Ichiro, notando o olhar da mulher sobre sua katana.
– Que seja feita a vontade do Imperador. Em que posso ajudar?
– Em nada, apenas fique aqui enquanto realizamos uma revista de rotina. Seremos rápidos, Ichiro lhe fará companhia.
Kimura e Kasuo começaram a procurar em todos os cômodos por qualquer sinal que pudesse denunciar a presença de ninjas. Akemi observava atentamente Ichiro, quebrando o silêncio após alguns minutos.
– Acham que estamos escondendo inimigos do Imperador em minha casa?
– Não achamos nada, mas se estiverem, já sabe qual é a punição – ele respondeu.
– Nada tenho a temer, somos honrados. Estou sendo pouco educada, devo lhe oferecer algo para beber.
– Não é necessário.
– É o mínimo que posso fazer – Akemi abriu o armário e retirou uma garrafa e três copos que organizou em uma bandeja sob o olhar atento de Ichiro – pode não ser o melhor dos saquês, mas é bom, muito bom, o senhor verá.
Ela ficou de costas para Ichiro por não mais do que cinco segundos, e ele pensou tê-la ouvido sussurrar algo. Depositou a bandeja sobre a mesa e serviu o saquê – prove, sei que irá gostar.
Ichiro pegou o copo e encarou Akemi – Deve estar louca se acha que cairei em um truque ridículo desses.
– Desculpe, não entendi.
– É louca, ou pensa que sou um completo idiota. QUER ME ENVENENAR COMO ENVENERARAM MEU PAI! – Ichiro arremessou o copo contra Akemi, o líquido derramado sobre sua roupa.
– O que? Não, não, juro pela honra de meus ancestrais, é apenas saquê – ela respondeu aflita.
– Uma cadela como você não sabe o que é honra – ele encheu um dos copos restantes com saquê, com uma das mãos agarrou e empurrou Akemi contra a parede – sem veneno, você diz, então, prove! Se não há veneno, então beba!
– Irmão, o que houve? – Perguntou Kasuo, que junto com Kimura, foi atraído pelos gritos.
– Essa cadela tentou me envenenar!
– Não, não, por favor – lágrimas escorreram pela face dela – é um engano.
– Tem certeza disso? – Perguntou Kasuo.
– Terei agora, ande, BEBA!
Akemi pegou o copo com mãos delicadas e trêmulas, levou até a boca e tomou o primeiro gole – Vê? Sem veneno, só saquê.
– Beba tudo! – Insistiu Ichiro.
Akemi hesitou por um instante para logo depois, tomar de uma vez só todo o saquê, entregando o copo vazio para Ichiro – Agora acredita em mim?
– Acharam algo na casa? – Ichiro perguntou ao irmão sem soltar Akemi.
– Nada – respondeu Kasuo – talvez sejam apenas camponeses.
O samurai soltou a jovem – Pelo visto, sua amiga dos origamis se enganou, jardineiro – disse Ichiro, enchendo o último dos copos com saquê – ou era esse o seu plano o tempo todo? Provar que Kasuo é o ponderado e eu o insano que em um ataque, quase matou uma inocente? Um brinde a Kasuo, o novo Daimio de Jade – levou o copo até a boca.
– Espere, deixe-me ver este copo – disse Kimura.
– Por que? Você viu ela beber, não está envenenado.
– Eu já disse a vocês, minha família é leal ao Imperador – disse Akemi.
– Sem dúvida, ainda assim, posso ver o corpo?

Em um gesto brusco, Ichiro entregou o copo para Kimura, parte do líquido caindo no chão – Como quase todo samurai, jovem, você desconfia de magia, é natural, mas é certo que em algumas ocasiões, ela pode ser muito útil. Existe uma que pode proteger ou limpar o corpo de alguém dos efeitos nocivos de um veneno. É uma pena que não houvesse alguém capaz de lança-la enquanto Okada Takashi agonizava.

– Onde quer chegar com isso, senhor Kimura – perguntou Kasuo.
– É uma magia complexa, poucos tem o conhecimento para evocá-la corretamente, e uma falha pode ser letal, mas existem magias bem mais simples, como a que detecta a presença de um veneno, que até um simples jardineiro pode aprender – segurando o copo com uma das mãos e gesticulando com a outra, Kimura disse meia dúzia de palavras em idioma antigo e quase esquecido, fazendo com que uma coloração negra surgisse no líquido cristalino.
– Veneno – disse Kasuo.
– Arma de covardes, mulheres e ninjas – respondeu Kimura.
– Pagará por isso, cadela maldita – Ichiro desembainhou a katana e se voltou para Akemi, o ódio incendiando seu olhar.
– AFASTEM-SE DE MIM! – Akemi gritou com uma voz grotesca, sua face se transformando em algo medonho, demoníaco, com dentes afiados e olhos completamente negros, fazendo com que tanto Ichiro quanto Kasuo recuassem contra a parede, se encolhendo aterrorizados, a Katana de Jade despencando no chão.
– Finalmente minha – Akemi saltou para pegar a espada, mas foi atingida por um soco no tórax, fazendo com que se afastasse.
– Desgraçado, como resistiu ao meu feitiço?
– Já lutei com uma Bruxa das Sombras antes, minha mente é mais forte do que meu corpo.
Akemi ergueu a mão, mostrando as longas unhas, mais parecidas agora com garras, um líquido preto escorrendo delas – Basta um único arranhão, e você terá uma morte lenta e dolorosa. Seus amigos não podem ajudá-lo, fuja, velho, enquanto ainda é tempo.
– Receio, como você bem sabe, que não seja uma opção.
– Então morra, miserável! – Em segundos Akemi lançou seis ataques com as garras, em uma sequência que claramente não visava um ferimento mortal, mas um único corte em seu adversário. Dos dois primeiros golpes, visando a face, Kimura se desviou com impressionante facilidade, apenas se movendo para um lado e para o outro, os três seguintes tiveram como alvo o tórax, obrigando-o a se afastar e realizar movimentos mais amplos, o último foi bloqueado, o pulso de Akemi agarrado e ela foi arremessada contra a bancada.

A bruxa saltou e ficou ereta rapidamente, mas no instante seguinte foi atingida por um chute no peito, que a arremessou contra a parede e quase a colocou fora de combate.

– Mestre de mãos vazias – sua voz sibilou.
– Já enfrentou um de nós, bruxa?
– Já matei um, você será o segundo.
– Faça seu melhor – disse Kimura, colocando-se em posição de defesa.
Antes que um dos dois fizesse o próximo movimento, três homens irromperam pela porta, todos trajando preto, rostos cobertos e segurando espadas curtas, imediatamente cercando Kimura.
– Depois que o matar, velho, matarei os herdeiros de Okada e levarei a Katana de Jade, o medo das sombras irá crescer no coração dos camponeses e as Terras Férteis sofrerão. Agradeço sua estupidez. Acabem com ele – Akemi ordenou.
A bruxa está certa – pensou Kimura – um homem desarmado contra três ninjas armados, suas chances de sobrevivência eram remotas e a culpa era toda sua.
Subitamente ouviu-se um grito de agonia e o barulho de uma espada caindo no chão. Um dos ninjas fora atravessado pela Katana de Jade, empunhada por Ichiro.
– Impossível – Akemi sussurrou – ele rompeu meu feitiço de terror.
Com um movimento rápido, Ichiro ergueu a katana, quase cortando ao meio o ninja, sangue espirrando em várias direções, banhando todos os presentes.
– MORTE AOS SERVOS DAS SOMBRAS – gritou Ichiro, erguendo a katana e se preparando para o combate.
Os dois ninjas restantes se dividiram, um confrontando o samurai, o outro, frente a frente com o mestre Kimura. Akemi estava ferida pelo chute de Kimura, mas reuniu forças para lançar outro feitiço, sombras saindo de seus dedos e começando a tomar conta do local.

Tanto o samurai quanto o jardineiro sabiam que se a escuridão tomasse o ambiente, seriam presas fáceis para os ninjas; Ichiro avançou atacando por duas vezes o torso e sendo bloqueado com relativa facilidade, porém, no terceiro movimento, realizou um golpe com toda sua força, de cima para baixo, e, embora o ninja tenha conseguido colocar sua espada em clássica posição de defesa, a Katana de Jade a quebrou como se fosse feita de bambu, rachando seu crânio, matando-o instantaneamente.
O ninja que enfrentava Kimura se sentia mais confiante do que seu companheiro, já que lutava contra um velho desarmado ao invés de um samurai segurando uma katana lendária. Os mestres de mãos vazias treinam para se defender de uma espada, mas não anseiam por este confronto.

Kimura aguardou, o ninja desferiu o mesmo ataque que Ichiro, um golpe veloz de cima para baixo, com a diferença de que o jardineiro não contava com uma espada para bloquear. Com velocidade quase sobre-humana e em um movimento inesperado, ele bateu as mãos e segurou a lâmina entre elas, barrando seu avanço e surpreendendo o inimigo. Com a guarda aberta, o ninja se tornou algo fácil para um chute em seu joelho, quebrando sua perna, e fazendo com que perdesse o equilíbrio. O chute seguinte o atingiu no queixo, deslocando sua mandíbula e encerrando a luta.

Agora restava apenas Akemi e seu feitiço estava concluído, a escuridão tomando conta do ambiente. Enfrentar uma bruxa das sombras com garras envenenadas em um local sem luz seria uma sentença de morte para nove entre dez samurais, mas Ichiro portava a Katana de Jade, e sabia como usá-la. Ele a apontou para a direção onde a bruxa deveria estar e gritou: “QUEIME”!
Um jato de chamas esverdeadas foi liberado através de sua lâmina, chamas mágicas iluminando escuridão mágica, quase atingindo Akemi, que conseguiu se desviar por pouco. Ainda que não tenha sido ferida pela magia da katana, as labaredas denunciaram sua posição, facilitando o ataque de Kimura, que voou por sobre as chamas e com uma voadora atingiu sua cabeça, fazendo com caísse inerte.

A casa estava em chamas e Kimura gritou – Ichiro, leve seu irmão para fora.
O samurai embainhou a espada e procurou por Kasuo, o ajudando a sair. Do lado de fora, Ichiro percebeu que Kimura carregava Akemi.

– DEIXE QUE A CADELA QUEIME COM A CASA – gritou.
– Ela guarda segredos que podem nos ser úteis, não deixe o ódio nublar sua razão – respondeu Kimura.
– Me perdoem pela minha fraqueza – pediu Kasuo, que começava a se recuperar.
– Fique tranquilo – respondeu Kimura – o feitiço de terror dela era forte, mesmo com todo meu treinamento, mal consegui resistir, e eu jamais havia visto alguém que caiu sobre seu efeito, rompe-lo em tão pouco tempo, seu irmão foi o primeiro.
Os camponeses impediram que o fogo se alastrasse, e samurais comandados por Isamu, chegaram até o local e escoltaram os gêmeos Okada e Kimura até o castelo.
Com Akemi presa e amordaçada na masmorra, Kimura finalmente convocou a reunião para anunciar o novo Daimio. Requisitou que na sala estivessem apenas ele, Ichiro e Kasuo.
– Deixem que eu comece pedindo desculpas, cometi um erro terrível, fui arrogante e quase provoquei a morte de ambos, assim como a perda da Katana de Jade. Jamais imaginei que entre os ninjas houvesse uma bruxa das sombras.
– Não é necessário que peça desculpas, senhor Kimura, foi uma boa luta – Kasuo disse.
– Sim, uma boa luta, mas afinal, quem de nós será o novo Daimio de Jade?
– Eu errei, mas estou confiante de que não errarei em minha decisão, nenhum de vocês deve ser o Daimio de Jade.
– Ficou louco? – Perguntou Ichiro.
– Não compreendo, somos os herdeiros legítimos, um de nós deve governar.
– E vai. Não há nenhuma lei que obrigue a existência de um Daimio de Jade, você, Kasuo, irá governar, será Daimio, e você, Ichiro, será o Samurai de Jade, e se aceitar, virá comigo, para integrar a guarda pessoal do Imperador.
Ichiro não respondeu, o silêncio tomou conta da sala.
– Sei que está travando um duro combate contra o seu orgulho, assim como sei que queria ser Daimio, mas as últimas palavras de seu pai para o samurai que estava ao seu lado, foram um pedido, ele desejava que eu o adotasse como discípulo e que o treinasse para adquirir paciência e sabedoria. Você já sabe o caminho da espada, venha comigo e sirva o Imperador.
– Aceito ser o Samurai de Jade e seu discípulo, sou um servo leal do Imperador – respondeu Kimura.
– Bom, muito bom, Okada Takashi teria orgulho dos filhos. Deixarei que façam o anúncio do novo Daimio e que se prepare para me acompanhar até o Castelo do Imperador.
– Onde vai, senhor Kimura?
– Tomar um chá – respondeu.
Naquela mesma noite, na casa de chá, Keiko ouviu toda a história.
– Fico feliz que Kasuo seja o novo Daimio e que Ichiro tenha mostrado o seu valor, mas…
– Mas? – Perguntou Kimura logo após tomar mais um gole de chá.
– É verdade que as últimas palavras de Okada Takashi foram um pedido para que você treinasse Ichiro?
– Oh, não, o veneno já tinha afetado sua mente, creio que ele disse alguma coisa sem sentido sobre flores de cerejeira. Vou sentir saudades de você e de seu chá, Keiko.
– Também sentirei saudades do senhor, mestre.

Fernando Fontana é formado em História, escritor e membro do CLFC; publicou o seu primeiro romance “Deus, o Diabo e os Super-heróis no País da Corrupção” pela Editora Viseu em 2018. Seu mais recente trabalho é a coleção CASOS SUPERNATURAIS, livros de bolso com os personagens criados em seu universo de super-heróis brasileiros no país da corrupção. O primeiro volume, “Procura-se ELVIS Vivo ou Morto”, foi lançado em abril; o segundo volume sairá até o final do ano: “Os Marcianos Também Traem”.
Maiores informações no blog:
http://www.fernandofontanaescritor.com/

2 pensou em “CONTO: O Jardineiro do Imperador (por Fernando Fontana)

  1. Gostei muito, a difícil e sublime tarefa de escolher um Daimio entre irmãos gêmeos segundo suas tradições e sabia decisão do jardineiro.

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