CONTO: Corredor Fantasma (Por Rogério Amaral de Vasconcellos)

Por um momento a multidão ululou como um animal prestes a ser agredido. De onde partiu o primeiro aviso, ninguém nunca soube. Nem agradeceu.

Corpos eram arremessados por seus próprios pares, deixando livre o caminho. Não houve feridos. Somente atônitas e algumas incrédulas testemunhas.

Havia uma névoa fina ou escapamento de gás, no caminho da aparição; da miragem; do holograma ou daquilo que foi cuspido do nada.

Um carro Fórmula 1.

Histeria coletiva ou não, o cheiro de borracha queimada e o rastro sinuoso dos pneus, formando um S – como uma assinatura de enxofre e alcatrão, misturada a pigmentos verdes e amarelos -, deixou sua presença física no asfalto.

Sobrenatural ou não, nem meio segundo se passou para algo se definir na névoa.

O dia de domingo, as ruas interditadas para o lazer, ganhou uma ocorrência nada vulgar.

Um MacLaren vistoso chispou pelo corredor humano, tendo uma figura sentada ao volante, guiado com uma só mão, fazendo na outra uma bandeirola tremular.

Foi mais fácil distinguir o singelo pavilhão nacional que a face encoberta dentro do aquário-capacete amarelo, mas muitos jurariam – com aquela certeza paranormal e por vezes irresponsável dos palpiteiros, contumazes proliferadores das fakenews – que não se tratava dum sósia e sim do genuíno.

Alguém que deveria estar morto há quase quarenta anos…

***

Um homem de ralos cabelos brancos, mirrado e trajado com a indignidade de uma esclerose múltipla, externada nos últimos anos, com sua cadeira de rodas motorizada saiu da adaptada limusine branca. Apesar de a deficiência reduzir a mobilidade, o empresário insistia em alguma independência. Afinal, por décadas a fio, foi uma paixão desenfreada, incondicional, por veículos motorizados.

Claro que não era exclusiva. Graças ao anticorpo ocrelizumabe, principalmente.

***

Ele estava ali, aquele um dia notório, jaz aposentado, locutor esportivo, naquele hiato peculiar entre as conquistas pretéritas e a senilidade futura. E também por uma carta anônima que, a despeito dos conselhos médicos tentando demovê-lo do intento, tramaram contra sua inércia habitual. A concessão, em vista da presumível (jamais unânime) importância daquele homem no passado, levou-o àquele exato lugar e a precisa hora que seu relógio suíço, edição limitada do centenário de um clube colorado (ganho há mais de duas décadas), não ocultava.

Súbito as lentes de grafeno sobre os olhos redesenhados, carregados de forma biônica, viram a multidão se fender. Um ronco de motor familiar (os ouvidos intactos e preservados) direcionou a atenção do empresário. Do meio do público “espirrou” o F1, como se projetado do próprio passado. Seria um novo coágulo se rompendo nas entranhas da cabeça dele? Um surto de alucinação, como não tinha há meses, driblando os exercícios de meditação da tão difícil e subestimada inteligência emocional?

Não pode ser…

O pensamento se rebelou contra a razão.
Por um momento pareceu-lhe que as pernas tinham acordado de um longo sono, quase obrigando o corpo a se ejetar do cárcere motorizado.

Enquanto o “quase” e o “se” ficaram somente na promessa, a sensação de inutilidade por um momento foi esquecida.

***

Para a jovem que acompanhava o cadeirante, na ótica desenhada pela lógica e o display de infográficos do monitor plugado ao paciente, pareceu um anúncio de síncope.

Ao lado dele, misto de enfermeira e guarda-costas, um olho no paciente e outro, desconfiado, na multidão, a ruiva não arredou o posto. A máxima dela não traía a determinação: As paixões do homem não podem suplantar suas necessidades. E a do paciente não devia conflitar com o receituário. O homem estava perigosamente próximo da euforia…

O coração dele podia falhar. Ela não!!

O chiado da seringa se fez presente. O ansiolítico homeopático foi injetado pela mulher, detentora do poder e do conhecimento (sobretudo de autorização legal) e agiu de acordo.

Mesmo trazendo imobilidade relativa ao empresário, o ricto desenhado nos lábios tortos dificilmente seria interpretado como um sorriso.

***

Ao passar dos 300 km/h o Fórmula 1, o piloto incógnito encravado no cockpit, deixou para trás o velhote quase prostrado pelo sedativo, com um ressalvo, além do sorriso petrificado: daqueles lábios, como uma roxa ruga horizontal fendida, saiu algo que jurara nunca mais pronunciar e a esclerose múltipla (mesmo medicada) o confrangia:

— Aceleeeeeeeeeeeeeeeeeera, A…

Mas a poeira soprada pelas rodas do veículo insólito ou por uma rajada de vento, aliada a insuficiência respiratória do cadeirante, tramou contra o “dó de peito”.

Enfim, calou-se. Ou melhor, veio uma sucessão de arquejos que a diligente – e cara – enfermeira lutou e venceu ao aplicar-lhe alguns CCs de um líquido âmbar, direto na veia estufada do pescoço.

Aquilo fez o homem delirar um pouco. Talvez uma alucinação dentro de outra. O fármaco usado sempre agia assim com ele. Todavia não sabia se era o efeito costumeiro da medicação ou seus sentidos exortados no reconhecimento facial do piloto, surgido naquela viseira levantada no capacete de modelo antigo. Um homem, um querido amigo, que poderia ter sido presidente do Brasil, não houvesse morrido no exercício de sua profissão…

Alguém que poderia ter feito a diferença e não fatiado o país, como os últimos dois exímios chapeiros de hambúrguer que chefiaram a nação.

***

Mesmo sabendo da maliciosa (ainda assim hilária) piada sobre o suicídio coletivo de alguns neurônios nos telespectadores, quando seu paciente, naqueles tempos, gritava goooooooooool – enquanto as demais células nervosas faziam a ola – a enfermeira jamais riu na frente dele.

Iniciando a condução da cadeira de rodas até a rampa da limusine, a ruiva sentiu o toque do paciente em seu pulso. Parou. Um olhar do homem bastou para a enfermeira entender. Algo pouco comum, pois viu súplica ali.

***

Quando o torvelinho de fumaça se dissipou no vácuo, já se transformando numa esquecida brisa, a multidão no passeio público retornou a sua dispersão de domingo, ao exercício obrigatório, sem saber ao certo o que tinha havido ali.

O híbrido de seis rodas ainda estava próximo ao meio-fio e o cadeirante só tinha olhos (grato pela visão telescópica) para a ladeira que desembocava na praça. Descendo o plano inclinado, vinha uma criança equilibrada num carrinho feito de restos de caixotes de feira e dotado de rolimãs gastas pelo uso intenso. Parecia outro item perdido no tempo…

Vomitado da garagem daquela relíquia abandonada que alguns ainda conheciam (inclusive o velho) como prédio da Rede Globo, a voz do menino chegou até o homem, desaguando-lhe as lágrimas no processo.

Era um “tá-tá-tá” interminável, inconfundível, impossível…

O moleque fazia aquela onomatopeia, provavelmente ensinada a ele por um tape antigo, ainda em funcionamento nalgum daqueles quartos interditados do extinto império do Jardim Botânico, onde a emissora carioca se criara e fora sepultada.

E o velho, já praticamente alojado no compartimento especial da limusine, saboreando o gosto das próprias lágrimas, também experimentou o arranhar de sua voz, ao tartamudear:

— Tá-tá-Taaaaaaaaaa.

Rogério Amaral de Vasconcellos
http://rogamvas.wixsite.com/revicia

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