CONTO: Gone Postal – Nos porões do Correio (Parte I) (por Vitor Gama)

Roberval acordou cedo para o trabalho e levou o tempo de esquentar o café para sentir a estranheza da situação. Nunca teve de usar o despertador pois seu trabalho não priorizava a pontualidade. Por esse motivo permitiu-se o luxo de perder-se em reflexões: havia a leve sensação de que um sonho auspicioso cartografando a localização das chaves do paraíso estava escapando. Um bom sonho para aqueles ambiciosos, mas esse não é Roberval. Os biscoitos de maizena que comia e o café que tomava, eram a representação do céu: um perfeito ying-yang de milho e cafeína. Repentinamente, os devaneios com a aposentadoria, mojitos, jornal matinal e bolo, foram interrompidos por uma mensagem no visor portátil: “Compareça urgentemente ao CTE – Curitiba. Aviso nível S-dex 10”. De repente, a borra de café tornou-se um mau presságio. Os farelos de biscoito foram avidamente engolidos pelo coabitante, Bolor, um gato preto feroz por tudo aquilo que é descartado e descartável.

Roberval deu tudo que tinha, e principalmente, o que não tinha para a EMCT, Empresa Multiversal de Correios e Telégrafos. Como carteiro-temporal seu ofício era garantir que as correspondências fossem chegar num universo oposto ao pretendido pelo remetente. “Mandou, chegou!”, mesmo que seja em uma dimensão paralela. Em três décadas havia ido apenas duas vezes para o CTE de Curitiba, a maior das cidades-portais do multiverso. “-Superestimado, não há um pão de queijo decente!”. Mas, ainda um pouco confuso, decidiu que atenderia a vídeo-chamada conforme o protocolo. Afinal, mesmo de meias brancas furadas e um samba-canção de bolinhas vermelhas, Roberval ainda era um representante oficial amarelo-azul da empresa. Não queria admitir a ninguém, nem a si mesmo, mas sua ponte de safena sangrava EMCT. A missão da empresa é mais importante, garantir o equilíbrio do universo, assim como foi o biscoito de maizena e café, a perfeita harmonia.

Bolor começou a tentar abrir o pote de manteiga quando levou um susto pelo súbito levantamento de Roberval. Roberval deixou a xícara de café na pia, pegou seu uniforme, o malote Mail-2000 e então foi para o ponto de ônibus. Levou apenas 02 horas de Nueva Chinatown à Curitiba, a viagem poderia ter sido menos sacolejante. Desceu do ônibus como se fosse um caixa de conteúdo frágil completamente revirada. Seu primeiro pensamento foi restituir a ordem dos vetores gástricos, forrar o estômago com um espetinho de carne. Talvez um medalhão. Mas não conseguiu, deveriam estar-lhe acompanhando pois mal desceu e já foi cooptado por seguranças da corporação. Nunca vira tal eficiência.

Sempre se impressionava com a fachada da agência central, um branco cristalino de falso mármore, ângulos retos para simular a aparência de simplicidade. Três andares apinhados de trabalhadores e clientes suplicantes, estes que não entendem a verdadeira missão da EMCT. Clientes enganados não pelo serviço, que apesar de todos os cortes e recortes era de qualidade, mas pela ideologia de “eficiência” dos tecnocratas. Não sabiam que o segredo todo estava nos subsolos, bastando pegar um elevador clássico da Otis, confiscado em uma entrega há mais de um século.

No subsolo o mármore era verdadeiro, gelado ao toque e mentolado ao cheiro. A visão do subsolo era igual um sonho erótico e burocrático, milhares de gabinetes arquivos, encomendas perdidas e escrivaninhas vazias. Apenas uma mesa era ocupada, um pequeno homem de grandes costeletas e cujo anacronismo era gritante. Este homem era Jaime, diretor da superintendência regional do EMCT. Jaime quebrou o silêncio e o protocolo remetente-destinatário:

—Vamos direto ao assunto, você foi escolhido pelo sindicato para essa missão e não tem como dizer não. Sei que você está prestes a se aposentar, mas escute primeiro, não apenas sua aposentadoria está sendo ameaçada, como também, que se falhar, sequer emprego terá. Aceitas a missão?

Roberval aquiesceu, não estava acostumado como um fraseado reto e sem ambiguidades naquele lugar. Jaime não deu tempo para dúvidas e continuou:

–Um carteiro surtou e está ameaçando todo o equilíbrio do multiverso, pois resolveu entregar uma correspondência em seu destino original, 159 anos atrasado. Às 08 horas da madrugada, ele pagou a frete-portalícia e passou em uma das caixas postais interdimensionais.

—Mas, ocasionalmente cartas chegam a seus destinos originais, por que esta é diferente? 159 anos depois os destinatários devem estar mortos e o carteiro não terá outra opção senão marcar “destinatário ausente”.

Jaime, não titubeou, a situação era peculiar.

—Normalmente sim, mas este caso não é nem de perto normal. O vilão voltou ao passado para entregar a carta no prazo correto. Cada carta tem sua função no universo, se ela tem de ser entregue não há como lutar contra o destino. Se fosse um simples spam, deixariamos passar. Mas, ao entregar essa carta um universo acabará mudando substancialmente e colidirá com outro. Imagine a confusão que a convergência entre estes mundos causará. É um pesadelo burocrático sem fim, com um duplo de cada pessoa, se quisermos entregar uma carta incorretamente, poderemos acabar entregando-a corretamente, e isto é o fim da EMCT.

Jaime olhou para baixo, e seu peito tremeu, desconfiava que a situação fora causada pela empresa Chronoposto ou pela DHI. Empresas privadas que sempre querem atrapalhar e engolfar a EMCT.

–Mais detalhes da missão estão disponíveis em seu SRO Mobile, o acesso é nível Mailmancer. Você tem 02 semanas para resolver isso. Um conselho, não confie nem em sua própria sombra.

Roberval nunca imaginou que algum dia chegaria a pôr os pés no alto escalão dos serviços postais e lamentou que tivesse de ser nestas circunstâncias. Todas as calorias que gastou em serviço não poderiam ser em vão, mas as coisas estavam mudando rápido demais para o seu gosto. O mais inquietante era saber que havia algo capaz de fazer um carteiro trair sua classe e pior ainda, saber que uma carta perdida ainda poderia ser entregue anos depois. Por fim, era aterrorizante a existência de um prazo que deveria ser cumprido. Olhou a correspondência perdida. Era a carta de aceite para uma bolsa integral na Academia de Artes em Viena, 1908. O destinatário? Adolf Hitler.

Continua nos próximos episódios.

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