ARTIGO: Retrofuturismo à Brasileira: A Autonomia do Steampunk Enquanto Gênero Literário (Por Caroline Libar)

Caroline Libar e
Telma Maria Vieira (orientadora)

RESUMO

O objetivo deste artigo é discutir a autonomia do Steampunk enquanto gênero literário em relação ao gênero que o originou, a ficção científica. Comparar aspectos internos e externos à narrativa de forma a evidenciar que particularidades garantem autonomia às obras steampunk, mostrando a fluidez e dinamicidade das histórias que compõem esse gênero.

Palavras-chave: Bakhtin, Ficção Científica, Gêneros, Steampunk.

Introdução

O objetivo deste artigo é analisar a obra Steampunk “A Flor do Estrume”, um dos contos da primeira coletânea brasileira dedicada ao gênero e, do ponto de vista de Bakhtin, verificar que aspectos legitimam o steampunk enquanto gênero e garantem autonomia e dinamicidade aos enunciados que se desenvolvem dentro dele.
Embora existissem narrativas retrofuturista desde 60 e 70, o steampunk ganhou nome oficialmente em 1987, quando um autor de ficção científica e fantasia, chamado K. W. Jeter enviou uma carta em resposta à Locus Magazine para definir do que se tratavam as histórias escritas por ele e por seus amigos, dizendo que as fantasias vitorianas poderiam conter a tecnologia da época, chamando-a de steampunk, nome que virou sinônimo do gênero.
O livro “Steampunk – Histórias de um passado extraordinário”, marca a estreia literária oficial do gênero apenas por autores nacionais ao ser lançada em 2009, trazendo narrativas fantásticas sobre um futuro que poderia ter sido, revisitando o passado com o olhar crítico, humorado e até ácido do presente.
Neste artigo, por meio da análise de um dos contos, “A Flor do Estrume”, escrito por Antônio Luiz M. C. Costa, pretende-se defender, à luz da teoria de gêneros bakhtiniana, a dinamicidade e autonomia que o gênero steampunk possui em relação à ficção científica, sem desvinculá-lo do primeiro, mas quebrando com a noção de normatividade entre gêneros.

Gêneros textuais e gênero literário

Segundo Bakhtin (1997), todas as esferas de interação humana, independente de suas particularidades, possui em comum a utilização da língua. Embora essa utilização seja concebida de forma individual e variada de acordo com a esfera em que ocorre, não compromete a unidade nacional de uma língua. A utilização da linguagem nesses diversos âmbitos da atuação humana se dá em forma de enunciados – orais e escritos – concretos e únicos, praticados pelos seus integrantes. Os enunciados, por sua vez, refletem condições específicas e finalidades de cada uma dessas esferas.
O conteúdo (tema) e estilo (recursos da linguagem de aspectos lexicais, gramaticais e fraseológicos), unidos à forma composicional (estrutura de construção) são componentes fundamentais do enunciado, já que são marcados pela especificidade de cada esfera de comunicação. O enunciado analisado em si mesmo é individual e único daquele que o concebe, porém cada núcleo de interação e utilização da língua elabora formas de enunciados comuns ao seu meio, sendo o que Bakhtin chama de tipos relativamente estáveis de enunciados. É desses tipos que se apropria o estudo de gêneros do discurso.
A riqueza e a variedade dos gêneros do discurso se equiparam à variedade da atividade humana, que é criativa e inesgotável, dotando cada esfera de um repertório de gêneros que cresce e se modifica conforme o nicho em que atua evolui e se torna mais complexo. Os gêneros do discurso são marcados pela heterogeneidade e, para facilitar a compreensão em seu estudo, Bakhtin os elenca em duas categorias: primários (gêneros simples concebidos no imediatismo, no cotidiano, de forma espontânea, informal e principalmente conectados à oralidade), e secundários (gêneros complexos concebidos em um contexto cultural mais elaborado e evoluído, atrelados à formalidade e conectados predominantemente à escrita). Bakhtin aponta que os gêneros secundários absorveram e reproduziram aspectos dos gêneros primários de todas as espécies durante seu processo de formação. Esses, ao se tornarem componentes dos gêneros secundários, perderam seu aspecto natural, de espontaneidade e imediatismo, assumindo apenas simbolicamente sua característica original dentro do enunciado secundário.
Segundo Bakhtin:

A distinção entre gêneros primários e gêneros secundários tem grande importância teórica, sendo esta a razão pela qual a natureza do enunciado deve ser elucidada e definida por uma análise de ambos os gêneros. Só com esta condição a análise se adequaria à natureza complexa e sutil do enunciado e abrangeria seus aspectos essenciais. Tomar como ponto de referência apenas os gêneros primários leva irremediavelmente a trivializá-los (a trivialização extrema representada pela linguística behaviorista). A inter-relação entre os gêneros primários e secundários de um lado, o processo histórico de formação dos gêneros secundários do outro, eis o que esclarece a natureza do enunciado (e, acima de tudo, o difícil problema da correlação entre língua, ideologias e visões do mundo). (BAKHTIN, 1997: 282-3)

A diversidade dos gêneros do discurso é tamanha que de imediato parece inconcebível a ideia de uma área dedicada a entender esse fenômeno. Na Grécia antiga, filósofos como Aristóteles e Platão se limitavam a estudar o fenômeno principalmente dos gêneros literários. Dividiam os gêneros em três categorias: narrativo ou épico, lírico e dramático, e a partir dessas três classificações básicas surgiam categorias secundárias, que eram consideradas como subgêneros. Mas esses e outros eram analisados, tanto na Antiguidade quanto na contemporaneidade, por uma ótica limitada e normativa, atentando mais à natureza verbal do enunciado do que aos seus princípios constitutivos como: a relação com o ouvinte e a influência deste sobre o enunciado, a conclusão verbal peculiar ao enunciado. Mas conforme defendida pela teoria bakhtiniana, a importância do gênero não se resume apenas a como o enunciado é composto (tema, estilo e estrutura), mas também ao “porquê” do enunciado ser desenvolvido dessa ou daquela maneira, considerando o contexto de produção, a relação com o interlocutor e as motivações temporais, espaciais e sociais para o enunciado ser composto como é. Para Bakhtin:

Ignorar a natureza do enunciado e as particularidades de gênero que assinalam a variedade do discurso em qualquer área do estudo linguístico leva ao formalismo e à abstração, desvirtua a historicidade do estudo, enfraquece o vínculo existente entre a língua e a vida. A língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na língua. (BAKHTIN, 1997: 283)

Considerando as particularidades dos gêneros, Bakhtin reforça a importância dos aspectos que influenciam a produção do enunciado e as esferas em que se presentifica.
O enunciado oral ou escrito, primário ou secundário, é considerado individual independente da esfera de comunicação na qual ocorre, pois exprime a individualidade daquele que fala ou escreve. Essa individualidade estilística não ocorre igualmente entre os gêneros, sendo alguns mais propícios a terem traços individuais do que outros. Os gêneros literários, dada a sua diversidade e gama de possibilidades variadas de expressão, são um exemplo de gênero propício à ocorrência dessa individualidade. Mas mesmo dotado de individualidade, o enunciado obedece a certos aspectos temáticos e estruturais da esfera na qual é concebido. “O projeto discursivo do locutor adapta-se ao gênero escolhido, desenvolve-se sob a forma de um gênero dado” (FIORIN, 2011: 194-5). Nos gêneros literários, por exemplo, um autor que escreva contos de terror e romances policiais e possua certo estilo individual, seguirá, nessas composições distintas, uma série de aspectos que não se limitam apenas à forma composicional e temática, mas considerando os leitores e o meio em que pretende circular este ou aquele texto e obedecendo ao linguajar aceito em cada uma dessas narrativas e a recepção por seus interlocutores.
O gênero textual em aspecto abrangente se refere principalmente às formas composicionais mais do que temáticas ou estilísticas do texto, porém, como Bakhtin não considera apenas os aspectos concretos dos gêneros, os gêneros textuais no âmbito literário também se referem ao repertório do qual o texto se alimenta, estilo que assume e esfera em que circula.
Compreendem-se então como gêneros textuais os tipos de enunciados desenvolvidos em esferas de atividade humana, em forma oral ou escrita, e como gêneros literários os textos desenvolvidos com intenção artístico-literária em suas diversas manifestações. Enquanto gêneros textuais no âmbito literário há: o conto, o romance, a novela, a noveleta, a poesia, a crônica, a fábula e a lenda, por exemplo. As categorias que se referem diretamente ao conteúdo temático, tais como: terror, suspense, aventura, ficção científica, fantasia, mistério e drama, por exemplo, são caracterizadas como gêneros literários. Não há normatividade nesse conceito como havia na Grécia Antiga, pois os gêneros se fundem e evoluem criando novos gêneros, possuindo a disposição um repertório infindável de temáticas, formas e estilos que se adequam ao público, tempo e espaço ao qual se destinam.

Nasce o Steampunk

Embora várias obras consideradas precursoras do gênero tenham sido publicadas entre os anos 60 e 70, o termo que o define surge apenas no final da década de 80. Em carta à Locus Magazine como resposta a um review sobre sua obra, K. W. Jeter – para descrever textos com histórias alternativas e de tecnologias retrofuturísticas que ele e seus amigos Blaylock e Powers criaram, e outros livros que possuíssem premissas semelhantes – cunha o termo que originaria obras e discussões em terrenos alheios à literatura: steampunk.

Dear Locus:

Enclosed is a copy of my 1979 novel Morlock Night; I’d appreciate your being so good as to route it to Faren Miller, as it’s a prime piece of evidence in the great debate as to who in “the Powers/Blaylock/Jeter fantasy triumvirate” was writing in the “gonzo-historical manner” first. Though of course, I did find her review in the March Locus to be quite flattering.

Personally, I think Victorian fantasies are going to be the next big thing, as long as we can come up with a fitting collective for Powers, Blaylock and myself. Something based on the appropriate technology of that era; like “steampunks,” perhaps…

–K.W. Jeter

[Thanks for the book! Capsule critique: Morlock Night combines H.G. Wells, Arthurian fantasy, and Victoriana in a strange, entertaining mixture — less antic than Infernal Devices, perhaps, but a clear forerunner. “Steampunks”? I like it…

–F.C. Miller]

Jeter prevê em sua carta que essas fantasias vitorianas poderiam ser a próxima sensação, desde que ele, Blaylock e Powers chegassem a um consenso para definir sob que alcunha reunir essas obras, e a sugestão de que fossem chamadas de “steampunks” acabou, como Miller demonstra, ganhando adeptos e consolidando a palavra definitivamente como gênero. Jeter possui os seguintes romances do gênero publicados: Morlock Night, de 1979 (uma sequência para The Time Machine, de H. G. Wells), Infernal Devices, de 1987, e a sequência Fiendish Schemes, de 2013.

O gênero, sempre considerado como subgênero da ficção científica, trazia em suas histórias, inicialmente, contos cyberpunk ambientados no passado, com tecnologias retrofuturísticas incorporadas, mas mantendo as atitudes “punkistas” comuns dessas histórias em relação às figuras de autoridade e à natureza humana, e, tal como este, era tipicamente distópico, trazendo temas noir e pulp fiction. À medida que foi se desenvolvendo, porém, o gênero veio a adotar um apelo mais utópico, com a mesma sensibilidade dos romances de ficção científica do século XIX e um ar de fantasia que predomina até hoje.
Ao contrário do que prega o senso comum, autores como Júlio Verne, Mary Shelley, H.G. Wells, Mark Twain, H. P. Lovecraft, Edgar Allan Poe, entre outros, não são steampunk, e sim pioneiros na criação de obras de ficção científica. No entanto, por conta dos cenários apresentados e tecnologias imaginadas, servem até hoje de inspiração para que autores contemporâneos criem suas próprias obras. A diferença entre ficção científica e o gênero do vapor, aliás, se dá pelo aspecto primário de cada uma: enquanto a ficção científica sempre utilizou de um tom mais objetivo, científico e de caráter quase premonitório, o outro trata não apenas de especular o passado sob o viés da contemporaneidade, mas também criticar politica e socialmente passado e presente, às vezes de forma romântica ou irônica.
Um dos romances steampunk mais famoso do qual se tem conhecimento foi escrito por Bruce Sterling e William Gibson, chamado The Difference Engine, que trata da invenção de Charles Babagge.
Se inicialmente Jeter nomeava como steampunk apenas as fantasias vitorianas, outros autores não tardariam a contribuir com resgates sócio-históricos e tecnológicos de suas próprias culturas para enriquecer e incrementar o gênero.
Embora recente, o steampunk também serviu de influência para a literatura nacional, trazendo ao final dos anos 2000 a primeira coletânea totalmente brasileira de contos de diversos autores, no livro Steampunk – Histórias de um passado Extraordinário organizado por Gianpaolo Celli (2009), seguido pela coletânea de noveletas brasileiras e lusófonas Vaporpunk – Relatos Steampunk Publicados Sob As Ordens de Suas Majestades, organizada por Gerson Lodi-Ribeiro e Luis Filipe Silva (2010). Não tardou o surgimento de romance estreante do gênero, escrito pelo autor José Roberto Vieira, intitulado O Baronato de Shoah – A Canção do Silêncio (2011) e O Baronato de Shoah – A Máquina do Mundo (2014). Outras editoras também investiram no gênero e novas obras estrearam, como a coletâneas de contos organizadas por Tatiana Ruiz, Erótica Steampunk – Por Trás da Cortina de Vapor (2013), Steampink (2011), e Deus Ex Machina – Anjos e Demônios na Era do Vapor (2011) que conta com a organização de Cândido Ruiz, M. D. Amado, além da própria Tatiana Ruiz, e novas coletâneas de noveletas, como a Retrofuturismo – Um Compêndio do Comendador Romeu Martins Sobre As Variantes do Punk (2013) que traz uma noveleta de cada gênero retrofuturista. O acervo nacional desse tipo de literatura continua crescendo, e conta com as recentes aquisições, como o romance de estreia de Enéias Tavares, Brasiliana Steampunk: A Lição de Anatomia do Temível Dr. Louison (2014) obra que relê personagens de clássicos nacionais inseridos em uma aventura retrofuturista, o segundo volume de Vaporpunk – novos documentos de uma pitoresca época steampunk (2014), organizada por Romeu Martins e Fábio Fernandes (2014) com a mesma proposta do primeiro volume e novos autores, e Homens e Monstros – A Guerra Fria Vitoriana (2013), romance de Flávio Medeiros Jr.. Outras mídias também se apropriam, lá fora e em território nacional, desse gênero, dentre eles: os quadrinhos, os videogames, os RPG’s, a música, o cinema, a moda, as artes plásticas, a decoração e as animações, por exemplo.
Se nas décadas anteriores o gênero alcançou pessoas em todas as mídias, na atualidade vem se consolidando também como forma de manifestação cultural e pessoal em todo o mundo, nas diversas esferas de atividade humana, e com força triplicada. Fluindo da literatura até outras formas de arte e expressão pessoal, o steampunk promove resgates estéticos, tecnológicos e comportamentais de valores das épocas das quais o gênero se alimenta, da Era Eduardiana, Vitoriana, Bela Época, Velho Oeste, Brasil Imperial, até a contemporaneidade vista de outro ângulo, como se o mundo tivesse evoluído à base da mecânica, tecnologia a vapor e a eletricidade de Tesla.

Um gênero, muitas possibilidades.

A primeira obra que oficializa o gênero enquanto produção nacional conta apenas com autores brasileiros. Iniciativa da extinta editora de literatura fantástica brasileira, Tarja Editorial, a obra traz nove contos de temática retrofuturista, ambientadas e influenciadas pela cultura dos autores envolvidos no projeto. Publicado pela primeira vez em 2009, o livro Steampunk – Histórias de um Passado Extraordinário é um divisor de águas, já que solidifica o movimento em âmbito nacional, trazendo temáticas pertinentes à nossa cultura. Contendo desde personagens originais até releituras de figuras históricas reais e literárias principalmente do Brasil, as histórias mostram discussões que transcendem a estética e discursos tecnológicos próprios de narrativas de ficção científica. O steampunk defendido enquanto subgênero da ficção científica torna-se mero detalhe temático, e tal definição é normativista e restrita demais ao comparar este e aquele tipo de produção.
Parte da coletânea, a obra “A Flor do Estrume”, de autoria de Antônio Luiz M. C. Costa é narrada do ponto de vista de Brás Cubas, e conta a chegada desse e seu amigo e colega Quincas Borba à Universidade de Piratininga. Eles são recebidos na estação ferroviária Imperatriz Leopoldina pelo diretor do Instituto Butantã e conduzidos em um coche sem cavalos denominado moãmirim, que tem a potência de doze cavalos, até a universidade onde o resto da equipe do diretor Caiuby os aguarda. Por toda a viagem o narrador-protagonista sente medo da máquina sacolejante e, embora seu relógio de bolso tenha marcado pouco tempo de trajeto, para ele pareceu uma infinidade. Não deixa de notar as paisagens que acercam o local, onde natureza e progresso coexistem harmoniosamente. Logo que desembarcam da máquina, são recebidos pela equipe, composta em maioria por indígenas, mas também por brancos e negros. Feitas as apresentações e boas-vindas, Brás e Quincas são conduzidos pelo diretor indígena até os fossos onde são armazenadas as serpentes diversas cujos venenos são extraídos para a criação dos soros antiofídicos e o narrador não deixa de pensar, com humor, em seu rival Lobo Neves entre elas, acabando por rir consigo mesmo. Não se demoram na excursão e logo são convidados a um abundante banquete de comidas típicas e saborosas, e servidos em belas taças de cristal com vinho português, enquanto os nativos tomam cauim em cuias e conversam amenidades, em português e língua-geral. Brás Cubas não ousa tocar em assuntos profissionais, pois sabe que é imperdoável aos indígenas misturar negócios e prazer. Em seguida, reconhece a hospitalidade tupiniquim mais uma vez ao ser conduzido ao quarto por uma jovem de nome Eirahy, que o ajuda a se instalar e também se deita com ele. Conforme rememora, enaltece as belezas da mulher e lamenta ter de ser infiel à sua esposa, mas não pretende fazer desfeita à bela índia. Enquanto se descobrem, é surpreendido pela mulher, que envolve seu membro com uma confortável película transparente, diferente em aspecto, mas de função igual às grosseiras túnicas-de-afrodite que utilizara em companhia de moças da vida com quem já se deitara. No dia seguinte, ele e Quincas são conduzidos pelo instituto até o que motivou a viagem, e no caminho eles se deparam com assustadoras criaturas de metal que soltam fogo, silvo e chiados assustadores, que servem de guarnição ao local. Brás não deixa de pensar em quão diabólicas elas são quando o diretor conta que foram projetadas pelos responsáveis por criar o moãmirim. Mesmo depois de silenciado o sistema de segurança, Brás e seu companheiro se movem receosos entre as máquinas para seguirem Caiuby, que se desculpa e diz que as medidas foram necessárias. Seguem juntos até um vestíbulo, onde encontram Chel, uma mulher bela e madura descendente dos maias, esposa do diretor e também doutora responsável por dois terços daquela e de outras descobertas que a dupla foi conhecer. Trocam seus casacos por aventais e colocam máscaras para adentrarem o laboratório, que exalava um odor desagradável como de mofo. Passeando por entre as inúmeras prateleiras bem organizadas, não pôde deixar de notar as jovens que analisavam os recipientes semelhantes a comadres hospitalares com tampa e tomarem anotações sobre seus conteúdos, sendo supervisionadas por um homem de olhar severo. Antes de dar qualquer explicação, o diretor puxou um daqueles recipientes e mostrou seu conteúdo aos presentes, uma pasta negra e viscosa recoberta de uma espessa camada de bolor azul-esverdeado que cheirava mal e parecia asqueroso. Ao afirmar que poderia estar estragado, Brás é calmamente corrigido pelo anfitrião, que afirma que, como do estrume nascem lindas e perfumadas flores, também dali havia um elixir para a saúde que valia duzentas vezes mais do que seu peso em ouro. Surpreendidos, os dois visitantes calaram-se e a doutora Chel se aproxima com um vidro em mãos, afirmando que depois de quinze anos de pesquisa, ela, o marido e a equipe de cinco naturalistas e dez assistentes conseguiram produzir um germicida potentíssimo chamado crisogenina, criado à base do fungo Penicillium chrysogenum. Mostra o pó branco dentro do vidro e afirma que é resultado de um ano de produção, o suficiente para salvar sessenta pacientes da maioria dos males causados por bactérias, de pneumonia à sífilis. Quincas mostra entusiasmo ao ouvir isso, enquanto o diretor confirma o sucesso do remédio. Mais tarde, conversam em uma sala de reuniões, dentre outras coisas, sobre a grave pneumonia de Cubas, e o tempo que demorou a ser curado, e o quanto teria durado trata-lo se o remédio milagroso já existisse. Brás mostra entusiasmo e oferece seus serviços no setor farmacêutico, citando seu emplastro e acaba corando ao lembrarem do comentário polêmico que o artigo no Zodíaco Médico-Brasílico fez ridicularizando o emplastro de Brás Cubas. Querendo mudar de assunto, ele questiona sobre quais seriam os custos de produção em escala industrial do remédio e outro naturalista, chamado Samaji, se adianta, dizendo que o custaria trinta cruzeiros o escrópulo, e que o projeto poderia se concretizar em seis meses com um investimento de 150 contos. Brás se desanima dando detalhes de sua situação financeira, mas é tranquilizado pelo homem, que cita vários grupos dispostos a patrocinarem a empreitada, desde que Brás tome frente à presidência da empreitada e ceda seu nome à firma, além de ser porta-voz junto à imprensa e ao governo. Prontificam-se a cuidar de todo o resto e ainda informam que ele terá rendimentos significativos. Citam que, além da crisogenina, os preservativos de látex demonstrado por Eirahy, a pílula contraceptiva da doutora Chel e a poção contraceptiva de Samanji também podem alavancar o negócio. Maravilhado, mas ainda duvidoso de como reconheceram seu valor, Brás pergunta porque o escolheram, e o doutor Suleimane responde que somente um lusitano bem relacionado com a aristocracia e editor de um jornal tão influente como O Monitor do Humanitismo poderia enfraquecer os argumentos que impediam o progresso, além de ter acesso ao vice-rei no Rio de Janeiro e ao Rei em Brasília. Suleimane reforça que apesar de esclarecidos, Pedro II e o Marquês de Pombal também são políticos e poderiam adiar ou mesmo negar licenças para que o empreendimento se concretizasse caso a oposição dos tradicionalistas religiosos e dos preconceituosos fosse forte o bastante. Chel completou dizendo que poderiam prometer que a crisogenina salvaria milhões de vidas do Império por todo o globo, e Samanji enfatizou que investindo em melhorias, em pouco tempo o remédio seria acessível para todos. Com o alto custo, as pessoas de recursos que sofrem de sífilis seriam o público seleto para iniciar a empreitada e caberia a Brás torná-las simpatizantes do remédio, dada sua influencia sobre a opinião pública e a família imperial. Convencido enfim, ele aceitou a proposta. No dia seguinte foi surpreendido por um brado feminino informando que o remédio havia sido roubado. Pensando em tudo que poderia perder agora que já estava familiarizado com a ideia dos ganhos, não se demorou em tentar impedir o punguista, que ninguém além era do que Bernadino, um dos naturalistas envolvidos no projeto. Agitado, Brás pede ao índio que conduzira a moãmirim em sua chegada que a buscasse para tentarem impedir a fuga. Com efeito, conseguem interceptá-lo, causando um acidente que culmina na morte do naturalista e uma feia fratura em Brás Cubas. Quando ele desperta num leito, informam que recuperaram o remédio intacto e até utilizaram nele, e em seis meses ele se recupera de vez retirando o gesso. Ele e Quincas tornaram-se fervorosos apóstolos da crisogenina, criando editoriais inspirados em favor do remédio. Inicialmente, sua esposa ficou escandalizada, mas ao saber dos ganhos financeiros não fez mais objeções, nem aos preservativos, nem ao contraceptivo da doutora Chel, achando até graça do poemeto que o marido criou para vender a poção – de baixo custo – desenvolvida pelo doutor Samaji. As Indústrias Brás Cubas ganharam notoriedade e se tornaram potência farmacêutica no Império, centuplicando a fortuna de Cubas, além de ter lhe valido um título de Marquês de Gamboa concedido pela sua Majestade Imperial, com direito a brasão de armas e tudo, onde colocou as cubas de crisogenina e o lema: Flos ex stercus. A narrativa encerra-se com um gracejo enquanto se chateia por ter ficado um pouco coxo: “Por que marquês, se coxo? Por que coxo, se marquês?”.
A obra escolhida embasa a defesa de que o steampunk funciona melhor de forma autônoma em sua dinâmica do que relegado ao secundarismo de sua predecessora, a ficção científica. Steampunk e ficção científica são gêneros distintos, mas não de forma normativa, que os separe em categorias antagônicas. Pelo contrário, graças à visão romântica da ficção científica do século XIX, autores até hoje se inspiram e criam universos plausíveis, ainda que improváveis, em suas narrativas steampunk. Porém, como Bakhtin (1997) aponta, mesmo os gêneros sofrem influências temporais, sociais, históricas e até políticas da esfera a que se destina, e isso se reflete na forma como o enunciado se concretiza. É Fiorin quem aponta marcas dessas mudanças dentro de um mesmo gênero comparando textos antigos e atuais, e, como Bakhtin (1997) salienta, é capaz de se mesclar a outros existentes criando assim um novo gênero. A seguir, um exemplo extraído de “A Flor do Estrume”:

[…] “Ao final da tarde não nos faltou outro aspecto da hospitalidade tupiniquim pela qual eu não ousara indagar. Duas jovens cunhãs se ofereceram para nos mostrar nossos quartos e nos fazer companhia. Vivaz, terna e falante, de brilhantes olhos negros, seios empinados, um mimoso rosto pintado de urucum, cabelos mui pretos pelas espáduas e vergonhas tão altas e tão saradinhas quanto as gabadas pelo Caminha. Não havia como lhe fazer desfeita, por mais que quisesse ser fiel à minha Nhã-loló. ” […]

O steampunk é resultado também de uma mescla de gêneros e estilos que compõem outros gêneros literários e estilísticos e, por conseguinte, se consolida de forma dinâmica e autêntica.
Não apenas os aspectos sintéticos da narrativa determinam o que é ficção científica e o que é steampunk, mas de qual repertório cada um se alimenta. Enquanto a ficção científica discorre sobre a interdependência entre homem e máquina em narrativas futuristas, ou mesmo prevê avanços tecnológicos de forma deturpada ou utópica, o steampunk satiriza e romantiza sobre o passado que poderia ter sido fatalista ou maravilhoso dependendo da visão adotada na história. Enquanto um permite-se especular sobre o porvir, seja levando em consideração a realidade atual da sociedade ou o capitalismo ou ainda os avanços de nossa era, fazendo o plausível parecer improvável, o steampunk permite fazer do improvável, plausível, fantasiando sobre uma sociedade que não tivemos, costumes e tradições que abandonamos e tecnologias que faliram antes mesmo de extrapolarem um décimo do que as narrativas propõem. Um se permite sonhar – e ter pesadelos –, enquanto o outro, bem desperto e ciente das contradições sociais que o mundo vive, reconta o passado por um viés imaginativo permeado de figuras reais e fictícias relevantes na construção da história e da cultura, e como eles imaginariam a contemporaneidade pelas lentes da sociedade atual.
As narrativas steampunk em maioria possuem o um estilo de linguajar antiquado, do vernáculo culto em narrativa, e variando entre culto e vulgar antigos em diálogos, mas de uma visão mais crítica da realidade de dentro e fora da história que as suas fontes de inspiração muitas vezes não possuem, ou possuem de forma limitada, relegadas ao contexto de sua própria época.
“A Flor do Estrume” não apenas promove uma viagem ao passado para o leitor, mas de forma bem ousada e humorada, o traz de volta ao discutir assuntos que ainda dividem opiniões na atualidade, como os escândalos de uma alta sociedade, doenças venéreas e métodos contraceptivos. O narrador satiriza o fato da mesma alta sociedade que poderia se posicionar contra o milagroso remédio apresentado na história dependeria dele, deixando subentendido que possuem condutas questionáveis, pois se deitam com moças de índole e saúde duvidosas fora do casamento. Quincas Borba mesmo exemplifica esse pensamento ao demonstrar alegria ao ouvir dos especialistas que a crisogenina pode curar a sífilis, e posteriormente recobra sua saúde e com ela sua eloquência, que usa para defender a droga que o curou. Diferente de uma narrativa de ficção científica, que especula com mais seriedade assuntos diversos, o steampunk dá espaço para o humor, a acidez e a manifestação individual do autor, podendo assumir um ar espirituoso e malicioso, e não faz apenas da tecnologia a protagonista – essa surge como consequência de uma era de deslumbramentos, normalmente ridicularizando e criticando a postura das pessoas ante o seu uso –, mas toda uma realidade histórica do passado revisitada de forma criativa e conscientemente crítica. Mesmo tratando de ciência naturalista e medicina, a história se importa mais em apontar as visões individuais e grupais da época sobre o progresso e o impacto que “o novo” tem na vida das pessoas gerando inquietações e receios, seja na aceitação de condutas ou novidades científicas, no campo da tecnologia, da medicina ou mesmo na sociedade. Enquanto o steampunk não se limita somente à ciência, flertando também com a fantasia, o horror e o realismo, a ficção científica se afasta dessa área de forma a soar o mais verossímil possível, embora exageros possam relegá-la ao improvável. De fácil compreensão por não abusar dos tecnicismos, a fluidez das narrativas steampunk emprestam ao gênero uma dinamicidade que faz valer sua autonomia estética, crítica, social e tecnológica.
De fato, a dinamicidade do gênero steampunk é tamanha que ele próprio gerou subgêneros de cunho retrofuturista, tendo maior familiaridade temática com o cyberpunk e subgêneros do que com a ficção científica pura. Textos como Frankenstein ou o Moderno Prometeu, de Mary Shelley, as narrativas de Júlio Verne e o horror lovecraftiano inspiram narrativas ambientadas em universos regados a vapor, e esse diálogo com o inconcebível torna-se plausível e natural ao gênero como jamais seria possível com a mesma propriedade em outro qualquer.

Considerações Finais

Como buscamos mostrar na análise, o steampunk possui autonomia e dinamicidade em suas composições literárias em relação à ficção científica, não por antagonizar com esta ou se afastar enquanto gênero gerado por aquela, mas por possuir elementos internos e externos ao enunciado que caracterizam as obras como diferentes, em público e conteúdo. Percebeu-se que, embora possuam em comum diversos aspectos, o gênero do vapor está mais próximo da ficção científica romântica do século XIX do que das produções contemporâneas. Enquanto na ficção científica o debate no campo sócio-histórico e científico é abordado de forma a parecer factível e explicável, mesmo que impossível no contexto atual, buscando convencer seu público de que aquilo poderia ser real e valendo-se de explicações científicas ou pelo menos racionais, no steampunk as narrativas seguem por um caminho diferente, em que situa os leitores temporal e socialmente, não tentando convencê-los de que poderia ser real com os recursos certos, mas criando histórias e realidades alternativas, sem necessariamente seguir a regra dos argumentos científicos ou racionais para garantir credibilidade e verossimilhança às suas narrativas.

Referências Bibliográficas

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MARTINS, Romeu (Org.). Retrofuturismo – Um Compêndio do Comendador Romeu Martins Sobre As Variantes do Punk. São Paulo: Tarja Editorial, 2013.
RUIZ, Tatiana (Org.). Erótica Steampunk – Por Trás da Cortina de Vapor.— 1ª ed. — Rio de Janeiro: Ornitorrinco, 2013.
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TAVARES, Enéias. Brasiliana Steampunk – A Lição de Anatomia do Temível Dr. Louison. Rio de Janeiro: Selo Fantasy – Casa da Palavra, 2014.
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VIEIRA, José Roberto. O Baronato de Shoah – A Máquina do Mundo. São Paulo: Draco, 2014.

 

Caroline Libar – é Graduada em Letras, revisora textual e consultora literária. Participante do movimento steampunk paulistano, é autora de contos publicados nas antologias Insanas, Moedas para o Barqueiro vol. II e III. Organizou a antologia S.O.S. A Maldição do Titanic, com Tatiana Ruiz, e escreveu o romance steampunk Expresso d’Oriente: O Demônio de Olhos.

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