Conto: Alternativa do Capeta (Por Rogério Amaral de Vasconcellos)

1

Pois é, amigos.

Eu me tornei um viajante no tempo, porém, não havia nenhuma parafernália atrás, nenhum efeito especial na frente, algo digno de levar você ao cinema só para colocar aqueles óculos de conjuntivite.

Apenas, um dia, e isso vem se arrastando há 20 anos, eu me deitei na cama e percebi que podia controlar meus sonhos, como se folheasse uma enciclopédia a bel-prazer: parando, voltando, avançando. Dava até para consultar os verbetes! Em outras palavras, um kindle dos sonhos.

Para minha versão antiga, com 12 anos de idade, isso já era o máximo.

Só muito depois, apesar de sempre ganhar notas altas em História – e às vezes um zero, por escrever coisas que os livros teimavam em dizer que “não eram assim”, que inventava; que a maioria dos vultos históricos, inclusive bíblicos, jamais frequentariam a Liga da Justiça, sendo barrados até do clubinho malvado do Lex Luthor – fui percebendo que a História podia assumir várias versões. Bastava eu querer…

E eu quis. Ah, se quis!…

***

Certa vez, voltando do trabalho medíocre, chateado com o rumo do país, mesmo após a Lava Jato e troca de cabeças em Brasília, de que tudo não passava de seis por meia dúzia, resolvi checar como eram as coisas em 1700, na Espanha.

Muitos de nossos males atuais derivavam daquela época. Se você não concorda com isso – e nem é história alternativa, ainda – pesquise. Leia Galeano, que também indicaria que você fosse buscar informação por conta própria e não confiasse naquilo que digo ou ele disse.

Como dizia…

Os hispânicos, já a partir do século XVII, além de exportar mendigos, devido à recessão, os recebia de toda a Europa. Aquilo virou o Centro do Rio de Janeiro ou qualquer centro/periferia de qualquer lugar, com a enxurrada de esmolantes e desesperados, procriados pelas doenças, a fome, o desemprego e o desespero.

Com o fim do regime naquele tempo, quando Felipe V assumiu, a Espanha era um país quebrado, na banca-rota, moeda podre, sem valor, grandes propriedades improdutivas, indústria falida, autoridades ausentes, metendo a mão em tudo, se apropriando do espólio, por assim dizer, enquanto o diabo corria à solta.

Não parece o retrato fiel, cuspido e escarrado de muito lugar que você conhece?

Com os Bourbons, que injetaram ânimo novo no velho, precisando de transfusão, veio a história alternativa.

2

Por qualquer motivo o cavaleiro se permitiu beber até cair. E, literalmente, foi o que aconteceu.

Talvez por efeito da altitude, aliada ao álcool de batata, instantaneamente Leopoldo Ramirez Ornellas, pesado em sua armadura, vigiado por condores, começou a sonhar. Mas era como se fosse outra pessoa usando seu corpo para experimentar aqueles devaneios. O sonho de uma pessoa vivido por outra.

No amplo vale emparedado por cordilheiras, de cumes nevados, ele ficou estirado na vegetação áspera, antes de ser acordado pelas lambidas da montaria, cansada de pastar ao largo. Felizmente não havia conteúdo erótico na insistente lambidela, de outra forma teria retribuído o beijo de língua.

O sonho ou devaneio, teimoso, resolveu acompanhá-lo no entardecer peruano.
Do céu, na lousa feita de nuvens carregadas de tempestade, se pegou observando os conquistadores espanhóis atravessando o Mar Oceano, tomando posse, território por território, daquele imenso continente que chamaram de Nova Espanha. Em um lugar, após submeter os habitantes a seus desígnios, perceberam o potencial daquela erva mágica, que os nativos tomavam ou mascavam. Ela fazia-os espantar o frio, o calor, o cansaço, a tristeza e a dor.

Uma plantinha ridícula que, se privada do consumo, criava transtornos de comportamento, alternando momentos de raiva absoluta a degradação extrema.

Àquilo que Leopoldo achava ser uma droga, pelo efeito devasto no usuário, os espanhóis deram o nome de “síndrome da abstinência”. Mais que isso, a chamaram, na alta cúpula de Castela, de “oportunidade”.

Interessados, notaram que o artigo, sim, poderia ser um produto revolucionário. Abastecer o mercado interno e mundial.

Que os ingleses, holandeses, italianos, portugueses e franceses ficassem com o mercado da seda e das especiarias, do Oriente! Enfiassem no rabo.

Que hacen buen uso en el culo!!!

Que os mercantes, tumbeiros, traficantes baratos, se fartassem da escravização, levando da África toda nação, até o último pigmeu, para lhes servir, em todo e qualquer lugar. Fodam-se eles também!

Não importava. Não mais. Onde houvesse pessoas, da escória às mais abastadas, o poder espanhol da “oportunidade” os alcançaria.

E, claro, tomaria tudo de volta. Sem ter o trabalho de ir buscar.

A sutileza do plano agradou ao Rei e seus ministros, estudiosos daquela maravilha do mundo moderno.

Então iniciaram a fase de refinamento do produto.

A coca.

Deixaram os índios conquistados felizes, pois lhe deram emprego e expectativas melhores de vida. Nem precisavam mais cumprir com a encomienda e a desagradável mita, da escravização temporária. Eles reformulariam os ideais cristãos de dar o pão e o vinho. Que tocassem suas vidinhas, desde que a produção de coca não caísse, evidentemente.

Aliás, não precisavam plantar outra coisa que não fosse a erva. E queimar os pastos, sazonalmente, para novo plantio. Entre queimar e colher, que fizessem o que lhes aprouvesse.

Que maravilha. O sonho, como todos, não tem freio, e geralmente ocorre ladeira abaixo.

3

O brasileiro, ainda atrelado aos sonhos de Leopoldo, foi “vendo” o produto que os espanhóis legaram ao mundo, na forma de bebida, comida, vestuário e principalmente fumo. Achou espantosa a capacidade da humanidade de colocar pra dentro o que devia por para fora…

O princípio ativo da erva foi potencializado, manipulado, graças ao gênio dos principais pensadores da época, não importava de onde tivessem sido raptados, antes de serem fuzilados (para que a fórmula não caísse no conhecimento geral).

Criou-se, naquele mundo alternativo, a regra dos 3D:

Dominação, iDiotização e Dependência.

Até os todo-poderosos ingleses, vencedores da Invencível Armada, apreciaram trocar a banal erva do tea sem-graça deles pelo novo produto, tipo exportação, artigo de luxo, dos vizinhos do Império Espanhol.

Imaginou-se, pelo sucesso da empreitada global, mudar o nome da moeda de peso para cocaíno (c$), mas nesse ponto veio a longa e áspera língua do pangaré, trazer Leopoldo para o mundo real, banindo o intruso brasileiro de volta ao mundo dele.

A corrupção podia não ter jeito, a humanidade fadada ao erro, ainda assim, até em sonhos, a esperança tinha sido a primeira a morrer.

 

Contato com o autor: rogamvas@gmail.com

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