Artigo: As Covids que Herdamos e os Quadrinhos Visionários (por Rogério Amaral de Vasconcellos)

Seguinte.

Alertado pelo nobre amigo Sid (dos tempos de Slev(*) e atuais do CLFC, que realizou a capa do meu pandêmico “Depois da Covid: In-cão-cebível…”) da existência de uma série em quadrinhos de Jamie Delano, que escreveu, e os desenhistas Frank Quitely, Warren Pleece, James Romberger e Steve Pugh, fui à luta e busquei mais dados.

Cada um dos desenhistas respondeu por três edições, compondo doze visões de nosso presente, visto mais ao norte. Todos eles se projetaram no tempo para “os dias modernos” e compuseram “Visões de 2020” (1997), da Vertigo.

Fui motivado a falar um pouco dessa HQ e de outra novel francesa, chamada “La Chute”, em português (“A Queda”) de Jared Muralt, que cometeu o desplante de “previr a Covid” cerca de quatro anos antes da Covid…

Começo com a mais antiga.

O tesão de viver é a grande sacada de “Visões de 2020” (representa o primeiro arco da série), que por aqui saiu pela Abril, com a dupla Delano-Quitely.

Vou ser curto (mesmo porque pode ninguém se interessar) e me focar no paralelo viral.

Na obra existe um presidente nos EUA que construiu uma muralha. Quem não está dentro do cercadinho murado fica sujeito a uma doença, que ao mesmo tempo é uma praga e uma foda. O vírus está no ar. Obrigando o uso de máscaras (talvez até usadas no queixo, como é tão comum vermos por aí). Tão letal e replicável quanto o HIV, provoca no infectado um desejo mortal de transar, criando um sistema de recompensas na forma de gozo, quando atinge o ápice. Esse efeito, o coronavírus ainda não manifestou… Talvez dentro do confinamento isso mude.

Em um mundo sob quarentena, nada mais democrático para os infectados, forçados a viver sem proteção, do que levar à doença para os sadios.

Se trepar até a morte é a solução, que ao menos seja compartilhada com o resto da humanidade. Em época de cloroquina distribuída em forma de kits e carreatas presidenciais, entendemos perfeitamente que o caos é o paraíso dos que gostam de contabilizar os mortos aos milhões: para poderem usufruir melhor dos despojos deixados pelos que já foram.

Ou uma ficção científica sem roteirista.

Na obra (focando no primeiro arco), quando o governo da Nova Direita foi batido em 2008, para a ascensão feminista, muita coisa mudou. Mas não a Lei de Gerson.

De Delano & Cia para Muralt são 30 anos. “La Chute”, nesse primeiro álbum (anunciado para seis volumes), saiu pela editora francesa Futuropolis. O autor é um roteirista e cartunista suíço autodidata, tendo lançado a HQ em 4 de março deste ano, considerando que estava “em gestação” e criação desde 2014.

O que era para ser mais uma distopia, retratando o mundo caótico que vivemos, tendo o lançamento atrasado, chegou às livrarias antes da Covid na Europa. Clarividência ou apenas um exercício da lógica, com grande dose de fatalismo (ou realismo)? Também não descarto a hipótese de marketing viral… Que melhor propaganda do que o velho corona, hem? Talvez. Tem gente que não quer ouvir falar de vírus, com ele ainda com as mangas arregaçadas, tão cedo. Pode servir para repelir, invés de atrair.

Retornando.

A premissa é nossa velha conhecida, mas não é da pandemia que assola o mundo, com safra 2019, que estou falando:

Segundo o “Le Monde”, escolas e universidades estão fechadas; comícios (ou aglomerações) proibidos; transportes coletivos reduzidos; a população foi forçada a ficar em quarentena; toque de recolher; supermercados e lojas saqueadas; hospitais lotados, sem leitos disponíveis; na linha de frente, os profissionais de saúde são alvos oportunistas da doença; corpos lançados em sacos dentro de valas comuns… a ficção é imitada pela realidade nos cenários de “La Chute”.

A história se passa em Berna. Quando o verão passou (mas o calor não) e o outono avança, o caos veio atrelado na estação, ceifando centenas, inclusive a mulher do personagem, que trabalhava em um hospital. Depois da quarentena, a enfermeira que trabalhava na unidade intensiva caiu vítima daquilo que tentava curar e é disseminada de forma avassaladora.

Havia uma vacina, mas a doença a ignorou insolentemente e se espalhou, incontrolável. O vírus faz o que se espera dele, se modifica, se adapta e se instala onde não é chamado. Na forma de vírus ou nuvem de gafanhotos humanos, hordas de refugiados de toda Europa se encarregam de invadir a cidade, promovendo um arrastão, tornando pior o que já era crítico. No mundo em crise econômica, social, ecológica, política e, claro, em queda livre na saúde, como sobreviver em um país à beira do colapso ou até dependurado no abismo? O que provocou o apocalipse? Fugir com os filhos pelas ruas tomadas de pessoas que faziam suas próprias leis não foi opção. Apenas o necessário para continuar resistindo a todo custo.

A ameaça do inverno e do frio chegando, quando a doença respiratória tende a aumentar sua eficácia, não mostra esperanças no horizonte.

O vírus de “La Chute” é como a gripe sazonal (espelhada na “espanhola”) altamente contagiosa, sendo necessária a lei marcial nas cidades atingidas por ela. Convulsiona a guerra civil, os saques, em busca de estocar mantimentos, os empregos somem, a luta pela sobrevivência se instala.

Não preciso dizer muito mais. Do mesmo. Mas do mesmo, antes.

O teaser oficial pode ser visto aqui:

O álbum também é encontrado com o nome “The Fall”, traduzido do alemão por Hélène Dauniol-Remaud, Futuropolis, 72 p., 15 euros.

Rogério Amaral de Vasconcellos é membro do CLFC,
rogamvas@gmail.com

(*) Slev – Sistema Literário Experimental Virtual que reuniu, nos anos 2000, diversos escritores brasileiros de ficção científica, muitos dos quais membros do CLFC, na criação de um universo compartilhado.

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