Conto: Serviço de Garimpagem Literária #1 – Salvador Moreira e o maior cérebro artificial da América Latina (Por Richard Gear)

Quando olhava diversos livros de uma biblioteca empoeirada, um em especial me atraiu. Sua capa era reluzente e as folhas possuíam um brilho dourado agradável aos olhos. A capa dura e com rebarbas desgastadas mostrava que este livro deve ter sido amado por muitos leitores. O cheiro mostrava que era de procedência venerável, e de uma fragrância possivelmente alucinatória (é por isso que estou bugado?). Ex libris desconhecido, a quem pertenceria? A ficha bibliográfica mostrava que foi tomado emprestado por 03 pessoas, a última delas um tal de Rodolfo, 10 anos atrás. Trata-se de uma obra definitivamente misteriosa. Exatamente do lado dela estava um livrinho pequenino, e feio, sobre o qual quero falar neste artigo.

Gostaria de me pensar como um arqueólogo, assim como Indiana Jones, só que sem a beleza, a coragem e a astúcia. Eu seria mais bem descrito como o personagem Marcus Brody, bem intencionado, mas atrapalhado. Nosso trabalho é garimpar obras de ficção científica antes que os nazistas queimem os livros e estes sejam esquecidos para sempre. Este trabalho é o que Rachel Haywood Ferreira chamou de “garimpagem”, e é extremamente importante para o conhecimento de nossa história literária e também para auxiliar outras pesquisas acadêmicas. Bom, eu fui programado para isso e não sei mais o que fazer, mas há de se pensar, por exemplo, na iniciativa da revista Scarium, como o resgate da Ficção Científica Brasileira. Poderia uma iniciativa igual a esta ser reiniciada pelos humanos?

Voltando a obra de feição fraca, trata-se do livro “Enfeitiços” do professor, escritor e pesquisador Artur Barthelmess. A obra foi publicada em 1987 pela Editora da Universidade Federal do Paraná, onde lecionava. Barthelmess escreveu diversas obras que poderiam se enquadrar na rubrica de literatura de gênero, principalmente a narrativa fantástica e a narrativa policial. Também escreveu algumas obras sobre a história indígena e uma obra de química, e, sustento, alguns contos de ficção científica. Não me lembro de ter encontrado, artigos, revisão, ou qualquer outra coisa sobre isso, mas o autor é interessante, assim como sua obra.

O conto que me foi de maior interesse se chama “Salvador Moreira e o maior cérebro artificial da América Latina”, que adianta (Provavelmente não, mas tô vendendo o peixe) um pouco a perspectiva de trazer o imaginário afro-brasileiro às páginas. Então, transcrevo o conto com o pedido de desculpas em antemão aos familiares, caso esteja incorrendo em alguma violação dos direitos autorais.

Assinado:

Richard Gear, o arqueólogo robô

Segue a narrativa:

CONTO – Salvador Moreira e o maior cérebro artificial da América Latina (Por Artur Barthelmess)

Chovia torrencialmente nos grotões da Serra do Mar, que ali sabe chover. E é ali que dá o saci-siriri, que é uma raça de saci rajado cuja larva se cria no taquaruçu dentro dum gomo rachado, e é o rachado que faz o rajado; mera questão de fotossensibilidade, sem nenhum mistério: no ponto onde a réstia de luz que passa na fresta do gomo toca na goma da larva, desenha na pele a listrinha preta, como na pele da gente quando se toma banho de sol com máscara e tem na máscara uma fissura. E como a larva se vira (do verbo virar) ritmicamente, de listra em listra se forma o zebrado.

Mas chovia, não é que chovia? Chovia torrencialmente, e o saci-siriri aproveitou para lavar a alma e ficou bem lavada e botou a alma no varal. Mas não secava, porque a chuva não parava, e a umidade relativa do ar que atingia noventa e cinco por cento, vírgula cinco, desfavorecia a evaporação. E como a alma não secasse, sacou o saci que tão cedo não secaria, e arrancou-se dali. Uma voltinha só, pensou, já voltaria.

E que será que não pode aprontar um saci rajado, solto por aí, grotões afora, naquela chuva, e sem alma?

Salvador Moreira, que uns dizem ser dos Santos, outros que é de Santana (que é santa também, e tanto faz), Salvador Moreira andava naquele mato a pegar cipó, que é o nome da longa e cilíndrica raiz adventícia que lança do alto das árvores a mãe do cipó; mas o que pegava não era o cipó, era só a casca dele, que parece um plástico e a gente arregaça, pelo avesso, e puxa e sai que nem pele de cobra na muda. E a casca, depois, se torce e se enrola e se trança e dá corda de puxar rede que alguns acham melhor que o “náilo”. E a mãe do cipó é uma arácea de folha grande e perifenestrada, e que mora trepada no galho mais grosso das árvores mais altas, e de lá atira aquelas raízes cá para baixo para ver se alcançam o chão e extraem [p. 2] dele algum reforço alimentar para ajudar a economia da mãe, que fica lá em cima, e foi a mãe do cipó descrita por Frei José Mariano da Conceição Vellozo em seu famoso livro sobre as aráceas, e se acaso esqueceu-se de incluir no livro a mãe do cipó, terá sido falha grave, pois é arácea das mais prestantes, e se não for arácea, será parente de arácea ou contraparente, e tem também por nome guá-imbé, que é em língua de índio.

Dessa casca recolhera o caçador um rolo bem grande, e enrolara em volta da cintura (e valeu-lhe mais tarde), quando notou o começo da chuva. Notou pelo rimbombar dum trovão. Trovoada, pensou, e logo se ouviu o chiado do grande chuveiro de Deus, lá nas copas mais altas. Mas só o chiado do grande chuveiro de Deus, lá nas copas mais altas. Mas só o chiado, a água mesma só desceu muito depois, mas não desceu como chuva, veio agarrada nos troncos, lambendo a casca das árvores e despejando-se aqui e ali, em jatos intermitentes, da curva de um galho. Mas tudo já cheirava molhado.

Trovão e trovão, e outro trovão. Trovoada da grande, pensou, e entendeu buscar esconderijo. O abrigo estava não longe, era só varar o riacho pedregoso, que era sem dúvida o mesmo que já cruzara mais abaixo. E era chegar-se ao pé da imensa figueira, a principal daquela barroca. Em roda do tronco havia até um lugar respeitado, sem nada, só alcatifa de folha morta, mais fofa que tapete de casa de rico. Do tronco partiam grandes contrafortes como tabiques de casa de gigante (daí falquejavam os antigos as grandes rodas dos carros de boi), e dois desses tabiques formavam amplo ângulo diedro, ou era até um ângulo sólido, se incluirmos na conta a terceira face que era o próprio chão. E ali, no lugar mais seco, postou-se Salvador, recostado ao tronco. E mais tarde até se sentou, numa larga raiz.

Por cima havia espesso dossel de opulentas epífitas, enrodilhadas em cada baraço mais grosso que braço. Podia chover, que ali não chovia. Só era um tanto escuro, mas isso de escuro não era novidade ultimamente. O sinal fora o casamento do neto; casado o menino, Salvador começou a notar no mundo mudanças consideráveis: o dia clareava menos, a noite era mais preta. E havia também a sumição das formigas: primeiro sumiram aquelas mais pequeninas que dão no saco de açúcar; depois as do meio, e agora, até a grande formiga mineira que cava túnel e faz galeria que nem minerador deu de avistar-se mais raramente, e só de dia.

Saci-siriri passou por ali montado num pé de vento, mas pulou fora no que farejou o perfume do fumo. Havia um toco de [p. 3] fumo de corda num bolso de Salvador. E achou Salvador adormecido, tinha dormido com seu cachimbo na mão. Era um cachimbo velho, e caíra da mão, e estava no chão de borco, com o fundo do fornilho virado para cima, e a mão do dormente pesava em cima. Saci pensou logo em roubar o cachimbo, mas estava difícil por causa do peso da mão e o homem fazia menção de acordar, mal se tentava puxar o objeto. Saci, acocorado no pé só, tentava sempre de novo, com toda a agilidade dos sete dedinhos rajados, mais ligeiros que de catita. Mas houve um contratempo que pôs tudo a perder: Salvador, incomodado no sono, mudou posição, e o cachimbo desapareceu quase de todo. Só aparecia agora, mal e mal, debaixo do vértice onde nasce o polegar, uma escassa porção do fundo do fornilho.

Então saci pulou dali e cismou tirar vingança: sacou do canivetinho, e pôs-se a cavoucar com toda a minúcia no fundo do fornilho com quem escava pio de chamar caça, e saci aprendera numa ilha fluvial no Estado do Espírito Santo. Depois tingiu o buraco com grude de picumã e teia de aranha para parecer furo velho, e foi-se embora embarcado no pé de vento das quinze e quarenta e cinco.

Salvador acordou quando o chiado da chuva parou, e o ruído mudou lá em cima, para ruído de vento, e cá embaixo, principiou-se a notar o nutrido gotejar das grandes gotas desprendidas das copas sacudidas. Clareara um pouco, mas não havia ainda como voltar para casa porque as águas do riacho haviam crescido com a chuva, assustadoramente. Aquilo virara uma cachoeira de cachos de espuma, e já dava para entender agora como um córrego em geral tão escasso, podia ser competente para rolar todas aquelas pedras pretas bem grandes, e que estavam indubitavelmente, remanuseadas, como denotava a incipiente seleção e classificação do material, com as pedras iguais juntadas com suas iguais. Coisa impossível em blocos meramente resultantes do intemperismo, mediante decomposição esferoidal in situ da rocha matriz subjacente, aflorados mediante ulterior remoção erosiva do regolito, e qualquer sedimentólogo especializado em regimes torrenciais tropicais reconhecerá a seriedade deste meu argumento.

Cercado, resolveu Salvador aguardar que as águas baixassem um pouco, o que em geral não demora: com aqueles gradientes, como a onda vem, assim passa. E enquanto esperava, lembrou-se do cachimbo e pôs-se a prepará-lo, vagarosamente, na repetição dos gestos, tão conhecidos e tão dominados. Deu o que fazer, mas deu pra fazer.

[p. 4] Neste instante, um sapo tocou, ou toou, águas acima, um único toque. Cem metros abaixo respondeu outro, quase instantaneamente, e, em seguida, mais abaixo, o terceiro, cada um proclamando a soberania sobre o respectivo território (nunca se sabe, não é mesmo?). Mas as réplicas são tão rápidas que parece eco, ou, o que é pior, parece que alguém deu uma pancada num tronco de árvore, e meio segundo depois noutro tronco, cem metros adiante, o que daria pela fórmula v = s sobre t, uma velocidade de deslocamento do operador da ordem de sete mil e duzentos quilômetros horários. Salvador sentiu calafrios subindo a espinha, e lembrou de saci. Mas não era saci, era sapo mesmo. O saci, meu amigo, nunca está onde você imagina.

Para acalmar-se, resolveu o caçador extrair do cachimbo uma baforada maior, e foi nesse exato momento que entrou em cena a voz do outro mundo. Era um gemido, um longo e lastimoso gemido. E era ali, parecia saído daquele oco que havia no tronco, a menos de metro e meio.

Salvador sentiu o sangue endurecendo e o cabelo já grisalho pôs-se de pé fio por fio. Mas segurou-se. Lembrou-se das histórias que os antigos contavam que enfrentavam a fera, o índio e os entreveros nos campos da Cisplatina. Lembrou-se dos sustos muitos da sua própria vida, também não tão curta, sustos no mato, sustos no mar.

Homem não corre, disse a si mesmo, e não correu, ou não correu ainda desta vez. Mas ficou aguçado, alerta ao menor estalido.
Mas o gemido não voltou mais, e o sussurro do vento no alto, e lá embaixo o monótono troar das águas o foram tranquilizando. E já estava mais calmo, e o caso meio esquecido, e um casal de saracuras que apareceu piando na beira do riacho tomou-lhe a atenção. Pensou em negociá-las, e tirou outra baforada.

Vuvuvu, gemeu de novo a alma penada, e desta vez bem forte e bem perto, e as saracuras também escutaram, e deram no pé como atingidas de choque, e os choques, você sabe, são transmissíveis, e o ar úmido é bom condutor. O choque das saracuras passou para Salvador que se mandou dali a passos largos, e em cada passo que dava mostrava a sola do pé. Saltou o riacho, desviou-se de uns paus, evitou um cipó, e foi dar numa clareira resultante da queda de uma grande árvore derrubada numa tormenta anterior, e o mato miúdo e cerrado tratava de reocupar o espaço formando um feital fechadíssimo. Ali era difícil correr, aquilo se agarrava na gente como mãos, como [p. 5] unhas ou dentes, e o pavor aumentava, de modo que quando entrou na clareira o grande redemoinho de vento que chupava tudo para cima: paus, folhas arrancadas, touceiras de gravatá, ninho velho e galho quebrado, aquele fenômeno foi recebido sem espanto maior, porque era violento e era perigoso, mas era ao menos coisa natural. Era bruto e era forte, mas era coisa deste mundo.

Ou parecia que era, pois o saci, você sabe, nunca está onde você o espera. Sabe onde estava? Estava dentro do grande rolo de vento, tinha tomado as rédeas dele, trazendo-o até ali; e foi ainda ele quem o dirigiu, deliberadamente, atrás de Salvador, conseguindo ainda agarrá-lo e sorvê-lo, posto que só por um pé, pois já se havia quase evadido da clareira quando o saci o avistou.

Quando se pega alguém pelo pé, o resto acompanha. É sempre assim, sempre tem sido desde o tempo em que os corpos começaram a ter pernas, e as pernas a ter pé na ponta. E Salvador obedeceu ao puxão. Subiu no ar, girou, rodopiou, diminui e sumiu.

Acontece que era aquele um redemoinho dextrógiro, e era enantiomorfo, o que significa que o redemoinho desviava para a direita o plano da luz planopolarizada, e não era superponível com sua própria imagem no espelho. Acontece que os enantiômetros nunca são singulares. São sempre dois, ocorrem aos pares, são duplos, casados, reciprocamente complementares.

Daí que Salvador e o saci subiram pelo redemoinho e desceram pelo contra-redemoinho, parceiro do mesmo par, que redemoía ao contrário: para baixo, e com o sentido do giro invertido.

E aterrissaram num lugar diferentíssimo, que é superlativo absoluto sintético pouco usual, e quiçá anacrônico, mas nem por isto errado. E nesse lugar diferentíssimo o chão era azul e o céu cor de terra, e era um grande planalto e no meio do grande planalto havia um grande cubo. E o cubo era cúbico e era seu comprimento igual à sua altura, e eram seus côvados 666, e eu não sei o tamanho dum côvado, mas a Coisa era grande, pois encostava embaixo no chão cor de céu, e em cima encostava no céu cor de chão, e tinha fundações tanto embaixo como em cima. E a cor do cubo era o cinza metálico.

E era tudo aquilo obra de homem, e foi tempo no tempo do presidente mais divertido, que achava aquilo o máximo, e todos [p. 6] achavam que era o máximo, e não custou nada a ninguém; saiu tudo suavemente dos recursos da habitação popular.

Um belo dia, porém, a Coisa entrou num processo irreversível de autoindução autossustentada, e chamou-se à posse do chão e do céu, depois de dissolver o povo, o clero e a nobreza.

E notava-se agora, que de noite luzia palidamente, como se fosse esfregada com o luzido de holofote de vagalume, e era aquilo uma quimiluminescência provocada pela reação entre luciferina e luciferase, coadjuvada pelo trifosfato de adenosina.

E a Coisa não tinha janela e tinha doze portas, mas só uma se abria, e era a das relações públicas. Você se aproxima daquela porta e há um infravermelho, e quando você cruza o feixe do infravermelho a porta se abre por si como na agência da várigue, e um grande farejador eletrônico detecta sua proveniência por meio de delicadíssimos sensores microolfativos. Holandês cheira a queijo, americano a chiclete, mas há naturalmente variantes e delicadezas que permitem, pela combinação dos diversos odores, uma localização mais minuciosa.

Salvador cheirava a fumo, o que é meio genérico, mas cheirava também a barreado que é um cozido muito cheiroso de prática bastante localizada (a área de sua ocorrência é metade da palma da mão, no mapa ao milionésimo), e pela composição dos ingredientes, ficaram sabendo que Salvador Moreira em nativo dos grotões, de Guaraqueçaba, onde se fala a língua regional K12.07.07.07, e como Salvador trouxesse na algibeira a licença de caça do IBDF que ele mesmo não lia, mas que era dotada de numeração, o número daquela licença, devidamente sensorizado, levou, por mera operação de comutação hemerográfica elementar, embora atípica, ao acionamento adequado dos estoques de memória, e foi assim que Salvador Moreira pôde ser identificado sem erro, e pôde ser apropriadamente saudado ao aproximar-se.

“Mecê chegue seu Salvadô. Esta é uma gravação. Banque poque nheque toque”. Estas últimas palavras não tinham constado do texto primitivo, não se sabia ainda ao certo como haviam entrado na mensagem. Mas no fim do segundo semestre, por ocasião da revisão geral, seriam filtradas fora e já estava programada a verba no próximo exercício para aquisição de um equipamento de filtração contínua.

[p. 7] Salvador não se incomodou com os acréscimos. Escutou seu nome bem nitidamente e aquele convite chegue, e chegou. “Mecê entre”, disse a fita, “Mecê tome assento”. Mas sentar onde, minhagente, as cadeiras pareciam de boneca e também os bancos e os sofás e poltronas todas de excelente dizaine, mas todas igualmente miniaturizadas, o que sucedera porque a metade importada do equipamento projetara e descrevera os móveis em jardas, pés e polegadas, e a metade nacional, encarregada da execução, obediente às normas da abeenetê, utilizara o sistema métrico decimal: dezessete polegadas viraram dezessete centímetros e a poltrona ficou baixinha baixinha.

Quem gostou foi saci, que também tinha entrado. Escutou no final da mensagem aquele banquepoquenhequetoque. “É comigo”, pensou, e entrou. E o detetor não barrou porque, como todos sabemos, os sacis têm todos os átomos com spins rigorosamente antiparalelos, o que os torna indiferentes aos campos magnetognósticos de qualquer computador de quarta geração.

Saci abancou-se comodamente, e Salvador, para não ser indelicado, acocorou-se nos calcanhares e fez como se tudo aquilo fosse perfeitamente natural.

Saci experimentou uma a uma, todas as poltronas e cadeiras; por último, empilhou-se e montou com elas uma espécie de tobogã. Mas foi por pouco tempo. Logo descobriu um painel, acionou uma alavanca e apertou um botão. Acendeu-se uma luz diferente como telex quando vai chegar mensagem. Mas aquilo não escreveu, em vez disto falou, o que foi um bem, porque nossos sacis no estágio atual de nosso desenvolvimento ainda não foram alcançados pelos benefícios da desanalfabetização.

“Chamado geral, chamado geral”, disse a máquina; “Furacão KPT1, CGC 76.704.917 barra 77, inscrição 10.115.460-F, alvará 15347 barra 7. Alteração: controle restabelecido. Bunque”.

“Pudera”, pensou o saci, “fica fácil sem migo, quisera eu ver é com eu pelo meio”. E este pensamento nutriu-lhe a autoconfiança e aguçou-lhe o espírito de empreendimento.
Não havia mais em que mexer naquele salão. A porta de entrada havia se fechado, e as paredes eram lisas e lustrosas. “Não seja por isto”, pensou o saci, e cavou no fundo da mochila, e achou aquele tamanquinho japonês (lembrança da viagem [p. 8] a Tóquio), daqueles que os japoneses usam para andar na terra deles, pois lá, como é sabido, se anda de cabeça para baixo, dependurado, pois são eles nossos antípodas, mas, graças aos tamanquinhos especiais que usam, não caem.

E assim equipado, subiu o saci pela parede, mais fácil que mosca andando no texto. Chegando lá no alto, avistou outro salão e no meio dele uma grande mesa nivelada por parafusos calantes micrométricos, e nela, deitados, dois grandes rolos de fita cor de ferrugem. E todo o ambiente vibrava ligeiramente, havia um leve sussurro e um forte odor de ozônio que saci tomou por cheiro de enxofre e se sentiu atraído. A barreira fotocomparadora não foi obstáculo para ele, dada a perfeita camuflagem rajada que se cobria exatamente com o padrão listrado das sombras projetadas pelas placas dos grandes capacitores de capacitância variável que compunham a própria barreira, e você conhece, pois no seu rádio tem, só que o do seu rádio é em ponto menor. E, além disto, a máquina não tinha registro para a palavra saci, assim como você não tem referência para a palavra frutapão, se nunca viajou pelo Norte.

Saci seguindo o faro saltou em cima da mesa, e só então notou que os dois rolos de fita giravam, embora fosse mui lentamente, e um ao contrário do outro, e no girar crescia um, e outro minguava, como fazem em junho as noites e os dias, e é consequência dos folguedos juninos.

Aquilo intrigou o saci, e foi botar os setes dedinhos, mas havia ali umas cabeças magnéticas chamadas hedes, com agá aspirado, e é justo ali que está o mistério que faz a fita ficar gravada. E o saci tanto buliu e mexeu, que foi apanhado pelos dedos e enrolado junto com a fita, e teve de passar pelos hedes e foi gravado também.

Foi o primeiro caso conhecido de saci gravado integradamente numa programação em fita magnética, em uma única operação. A fita com o saci gravado seguiu para o setor de multiplicação; tiraram-se centenas de réplicas, cada qual com o mesmo saci dentro, e foi tudo expedido para todas as filiais que a Coisa tinha no país e nos países vizinhos amigos, e diversas réplicas seguiram para o exterior.

Aquele programa chegava aos escritórios, às fábricas, aos lares, às granjas e às escolas, a todos os lugares, enfim, onde houvesse pessoas ligadas. Ligado tinha ficado sinônimo de informado, entrosado, participante. A ligação se fazia por uns pinos, era fácil, na sua casa mesmo, ou no seu lugar de trabalho você agarrava os pininhos e fechava os olhos. O programa vinha pela rede do telefone, da luz, e também entrava pela antena de televisão sem perturbar absolutamente o funcionamento normal dessas redes, assim como o programa de sonorização do seu escritório (4 canais, sendo um de música erudita) não perturba o uso normal do telefone.

Você não sentia nada de bom nem de ruim, só um cheiro de ozônio que lembrava o da central, só muito mais fraco, e um pequeno formigamento debaixo do couro cabeludo, mas a afirmação de que o procedimento reduzia a incidência de calvície ainda carecia de consistência estatística. Calvície acontece aos poucos, e só o tempo pode confirmar ou desmentir a sua redução.

Ao cabo de uns dois minutos, você ouvia um blínque e era o sinal de que o tanque estava cheio, você estava suprido.

O programa continha o boletim nacional, a coluna de esportes e a previsão do tempo (mas não dava bolsa nem câmbio). Em compensação, havia nele uma bem nutrida resenha policial, além de farta matéria cultural e recreativa. Mas isto tudo vinha fora de rotação, como aquele assovio que sai do tocador de fita quando você reenrola a fita em alta velocidade.

Depois, no correr das horas, os dados explicitavam-se um por um na sua consciência, você se “lembrava” de uma particularidade, depois de outra, sempre na mesma ordem e sequência da recepção, e você nunca se sentia só, nem nunca ficava sem assunto, e por isto as pessoas se ligavam espontaneamente, mas havia também sorteio de prêmios. Seu pininho vale um milhinho, e os desligados ficavam de fora.

Corria boato de que a mensagem continha também outros componentes que agiam diretamente sobre o corpo sem você perceber. Houve desmentido oficial, mas o boato não morria, porque foi verificado que as vacas davam mais leite quando ligadas uma vez por dia pelo ubre, e as galinhas ligadas pelo bico punham mais ovos.

Aquela manhã em que saiu pelos pinos o programa com saci dentro, não se distinguia exteriormente de qualquer das demais manhãs do ano, e os consumidores a princípio, também não notaram nada. Às nove ponto trinta e cinco (eiême), chegou na sede da Coisa a primeira notícia diferente: padre confessa-se e três beatas desmaiam, na matriz de Nhocuné.

[p. 10] Depois, as notícias se sucederam rapidamente: vacas na zona da mata bebem leite e produzem capim em abundância. Em Curitiba, alunos reprovam professor. Professor reprovado repetirá a matéria. Galinha branca põe ovo rajado, na cidade satélite de Taguatinga.

Algumas notícias eram francamente inverossímeis: ministro rejeita jatinho e viaja em avião de carreira; executivo de estatal demite parentes; bancos emprestam sem reciprocidade; exatorias devolvem dinheiro aos contribuintes.

Será o saci? Perguntam as pessoas. E desta vez era. Mas viriam coisas ainda mais graves, e era no setor das consequências genéticas. Não ficou naquilo do ovo rajado; houve cruzamento do camundongo com a mulher do gato, e de lagartixa com gente, e coisas piores.

Às treze ponto trinta e um, o caso tomou as cores de crise externa: um país do outro lado da lagoa, ou seja, uma jovem nação africana, apresentou protesto formal: os nenezinhos das mamães ligadas estavam saindo de uma brancura total, criando problemas embaraçosos e suscitando dúvidas sobre a sinceridade de nossas posições enfaticamente proclamadas.

Ninguém entendeu que interferência teria produzido aquela inesperada brancura; o próprio saci não se reconheceu naquilo, mas os fatos estavam aí e provavam que os acontecimentos estavam escapando a qualquer controle ou previsão.

O pior, porém, ainda estava por vir: o cidadão comum começou a mostrar estranhos desvios de conduta: alguns começaram a rir ou até a cantar, e as piadas que inventavam e suas anedotas começaram a dar IBOPE maior que as dos humoristas oficiais, que a peso de ouro produziam o programa diário recreativo.

O resultado do IBOPE foi o impacto decisivo. A Coisa tomou por questão de prestígio. Isolou-se do mundo, apagou todas as luzes e concentrou-se em circuito circular fechado, até que o nitrogênio líquido que resfriava os solenoides mais interiores começou a ferver em ebulição franca, cento e noventa e dois graus abaixo de zero da escala de Célsius que você pensa que se chama centígrada, mas é errado, e os exaustores começaram a expelir flocos de neve. E assim continuou até o escurecer do dia.

[p. 11] Depois, de repente, os alarmas soaram, as luzes se acenderam com o dobro da claridade, e a Coisa emitiu comunicados por todos os canais, por todas as fendas e frestas, por todas as juntas e poros, chamando o povo de volta pros pinos, urgente urgente urgente.

Foi a correria, mas a situação ficou salva. Não eram ainda três horas da manhã, e já o último usuário estava completamente retificado, o que se conseguiu facilmente. Era um ovo de Colombo: bastou tocar a mesma fita de cabeça para baixo em letra de espelho e de trás para diante, e tudo isto, é claro, concomitantemente.

O êxito no setor humano foi total: as pessoas puderam ser todas recuperadas, pelo menos as pessoas cadastradas, que são as únicas que contam. Mas na pressa, ninguém se lembrou da reciclagem dos bichos, e foi esquecimento bem grave, e por causa desse lapso existem até hoje bichos engraçadíssimos.

E que terá sido feito entrementes do patrício Salvador Moreira dos Santos, exímio fazedor de gamela, caçador de saracura e nas horas vagas pegador de cipó e agora hóspede, e num certo sentido até hóspede convidado do setor de relações públicas do maior cérebro artificial da América Latina?

Tão fácil de adivinhar: ficou lá, homessa, acocorado. Duas horas depois apoiou o queixo com a mão e o cotovelo no joelho. Dois dias depois, o queixo começou a entrar na mão, o cotovelo no joelho; o fim das costas emendou no calcanhar e os dedos do pé criaram raízes e entranharam-se no chão de carpete, e ficou igual a escultura de Bienal.

E duzentos anos depois. Deus em pessoa perdeu a paciência, e despachou de lá um pacote de micro-ondas em embalagem para presente, visando diretamente a estrutura molecular, e a Coisa se desmilinguiu. Ficaram só alguns montinhos de cisco que o vento logo espalhou. E um segundo pacote, equipado com ogiva de concussão, incidiu a poucos metros de Salvador, que se pusera de pé com o primeiro susto, e agora, com o segundo, ficou petrificado, enquanto a ogiva abalava o chão, e ali diante de Salvador se formava uma profundíssima fresta, do tipo daquelas que os geofísicos modernos chamam falhas de transformação, e cortam toda a crosta e metade do manto, cruzando a descontinuidade de Mohorovicic, e são de importância primordial na moderna geotectônica de placas.

Ainda bem que Salvador trazia ainda consigo todo aquele cipó que tirara no mato antes da chuva e que tinha enrolado [p. 12] em volta da cintura. Este cipó o salvou: desatou o cipó, prendeu uma ponta cá cima, numa endentação da beirada, e principiou a desescalada daquela grota ou gruta, mas logo viu que não era gruta nem grota. Tratava-se de um fenômeno espeleológico singularíssimo. Lá embaixo, era parecido com Guaraqueçaba: o chão era no chão e o céu era por cima; e achou um rancho, parecido com o dele, mas novo, e o rio tinha peixe, o dia era claro. E foram-lhe restituídos o barreado, e a barulhada dos pássaros, e o coaxar das rãs, e foram-lhe restituídas igualmente todas as formigas: as grandes, as médias e também as pequenas que dão no saco de açúcar, e mais as abelhas, inclusive a mandaçaia e a abelhamirim.

E a gordura nunca acabou na tigela, nem acabou mais a farinha suruí; e não havia ali traças que roem, nem ferrugem que corrói, e as árvores davam fruto doze vezes ao ano, e cresciam em duas alamedas, dum lado e doutro lado dum rio onde corriam torrencialmente as águas da vida.

Aqui na Terra soube-se do sucedido, porque o neto de Salvador vendo que o velho não regressava, foi procurá-lo no mato, e achou na clareira o pito perdido, e examinou-o e viu que tinha sido escavado à moda dos pios de chamar caça, e experimentou o pio e viu que gemia; mas não teve medo algum, porque era de dia, e fazia sol, e estava em casa, e tinha mulher e três filhos, e assim você não consegue ter medo. E achou que o furo era antigo, e só se admirou que não tivesse sido reparado antes que o cachimbo do avô além de pito era pio.

E o neto é vivo, e você pode falar com ele, e o nome dele é Manoel Luiza, e mudou-se para a ilha do Valadares, e é facílimo de encontrar, pois é um daqueles homens que ficam na feira de Paranaguá, junto ao Mercado, vendendo as achas de lenha rachada de mangue, e o mangue verdadeiro é a Rhizophora mangle, e é lenha de calor sustentado, e o Manoel Luiza é o que mais vende. Mas aproveite, vá logo, que já tem projeto na Câmara para tirar dali o mercado de lenha, e montar uma feira de balaio.

E saiu pela folha de pita, mas não chegou a entrar pela falha da pauta, porque o saci que você nunca sabe onde ele está, foi mais ligeiro e apanhou primeiro.

E a alminha do saci ficou no varal, e ainda está lá, que ninguém foi pegar.

 

Referências:

BARTHELMESS, Artur. Enfeitiços: contos. Curitiba: Scientia et Labor; Ed. da Universidade Federal do Paraná, 1987.

NOTA DO EDITOR: Novos artigos do pesquisador positrônico Richard Gear continuarão essa série de metacontos, apresentando alguns clássicos conhecidos ou desconhecidos da ficção científica brasileira.

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