Conto: Serviço de Garimpagem literária #2: A História do Brasil Escripta pelo Dr. Jeremias no Anno de 2862. (por Richard Gear)

Desde Cristóvão Colombo se sabe que todo bom descobridor se descobre, descobre por acidente. Trata-se de uma necessidade lógica, pois se já soubesse o que iria descobrir, não descobriria. Já estando descoberto, nada mais há para se descobrir. O próximo passo também é claro e lógico basta fingir que o lugar estava vazio e pronto, tem-se um descobrimento stricto sensu.

A obra que garimpei hoje pode realmente ser chamada de descobrimento. Isto é, além do papel do acaso tive que dispor de minha cara metálica para proclamar a obra descoberta, apesar de todas as evidências contrárias. Tenho certeza que os passos são fascinantes e que os bardos cantarão este feito por 500 anos. Tomo o cuidado de explicitar estes passos para não ser mal entendido ou para que ninguém coloque o nome de outro androide em minhas descobertas.

Aconteceu da seguinte forma, estava eu conversando com minhas colegas Nina e Maria sobre o formato da Terra. Dizia eu que ela não é redonda, mas, poderia ter um formato de um avião, tal qual Brasília. Convenhamos a obviedade da proposição, meu caro leitor, pois a Terra flutua no ar e os aviões também. Seguiu-se que tive uma epifania: ora, se vivo em Cubatão e Cubatão corresponde ao banheiro do avião, então a Ásia devia ser na Asa deste mesmo avião. Mas a quem importa a Ásia? Por nunca ter ido ao continente asiático quis saber como poderia fazer essa expedição. Minha primeira ideia, cavar um buraco, estava fora de questão, ainda mais eu estando na posição equivalente ao banheiro, estaria cavando uma fossa cagada sem chegar ao Butão. O motivo era outro, nobre leitor: tempero. É de conhecimento geral que o Sazon é produto da empresa Ajinomoto, nome claramente nipônico. Então, querendo caldo no meu curau, virou questão de honra descobrir uma forma mais célere de alcançar tal paraíso de sabores.

Foi aí que me pus a fazer exegese dos escritos sagrados: Isto é, as músicas de Oswaldo Montenegro, grande menestrel de Brasília. A decifração de tal obras me esclareceu o caminho, vejamos quatro músicas: 1) O País dos Canários Amarelos; 2) Janelas para Brasília; 3) O Condor; 4) Pra longe do Paranoá. A primeira é clara, “País dos Canários Amarelos” é o Brasil, em uma das linhas o bardo diz: “E o que vale, em cada bicho, é asa”. A dica do bicho e da asa é uma alusão à música “O Condor”, que é um bicho e tem asa. O condor também é um avião e uma empresa de transporte aéreo, estávamos chegando perto do sentido transcendental da obra montenegrina. Enfim, essa música tem os seguintes trechos: “Quando voa o condor com o céu por detrás, traz na asa um sonho”, lembremos que a música anterior falou que o que vale é a asa, e a asa aqui é o sonho. Que sonho é esse? Nas linhas seguintes da mesma música tem a passagem: “Ah, e se o planeta explodir eu quero que seja em plena manhã de domingo”. Então é um sonho de apocalipse, mas todos morrem? A resposta está na música “Janelas para Brasília” cuja linha diz algo assim: “Para longe do Paranoá, numa tarde quente eu fui-me embora de Brasília num submarino do lago Paranoá”. Um trecho extremamente complexo que merece outro parágrafo.

Vejamos, o mundo está acabando e o bardo foge de Brasília, mas como ele foge? Num submarino? Não, isso é pra despistar os leitores não gnósticos. Vejamos, a dica está em Paranoá: Para/no/ar. E o que para no ar: o avião. Está aí a primeira parte da resposta, ele fugiu num avião e Brasília é no formato de um avião. A última música desvenda o segredo: “Da janela do meu quarto olho pra Brasília”, percebam o paralelismo, “Lógica da arquitetura, lógica do mundo, hoje ainda gosto de olhar pro mundo”. Como interpretar tudo isso? Ora, trata-se de um sonho premonitório de Oswaldo Montenegro onde os escolhidos exegetas (fãs de Montenegro) serão os únicos sobreviventes, desde que saibam entrar no avião. Para saber como é esse avião salvador tem que saber a arquitetura, e ai conhecerá a lógica do mundo.

Para saber a arquitetura do avião de Brasília deve-se conhecer a história do lugar, portanto, fui ler sobre a vida e obra de Kubitschek. Aqui confesso o poder do acaso, minha memória volátil falhou: Kubitschek para mim é Kubitschek, eu não lembrava o primeiro nome dele. Então botei João Kubitschek e fui procurar, não sabia que João Kubitschek é tio de Juscelino (ô nome feio). João Kubitschek foi um poeta que publicou no jornal “O Jequitinhonha: folha política, litteraria e noticiosa”, de Diamantina, por exemplo, é de sua lavra o poema “Ao Brazil” publicado em 13 de Setembro de 1862, Número 37, ano 2. Aqui entra a segunda parte do acaso, gostei da leitura do poema e me perdi do meu intuito inicial, continue lendo para ver se achava mais poemas. Foi em 22 de novembro de 1862, no número 47 que veio a descoberta. Trata-se de “A História do Brasil Escripta Pelo Dr. Jeremias no Anno de 2862”, do Joaquim Felício dos Santos. O leitor pode então perguntar: Mas Richard Gear, como você diz que descobriu uma obra tão conhecida dessas?

Ora caro leitor, lembremos o segundo passo da cartilha do descobridor. Eu digo que nunca vi menção nos livros de Alexandre Eulálio, Ana Cláudia Romano Ribeiro, Roberto de Sousa Causo, Teresinha del Fiorentino e tantos outros e outras. Em seguida a gente bate em quem dizer o contrário e nós comemoramos 500 anos depois. Ergo, está descoberta a obra. Digo mais, não apenas está descoberta esta obra, como há também a obra “Páginas da História do Brasil, escripta no anno de 2000” esperando transcrição. Mas isso é papo para depois.

Segue uma transcrição da transcrição, adaptada na ortografia (exceto o título):

Assinado:

Richard Gear, o arqueólogo robô

CONTO: A História do Brasil Escripta Pelo Dr. Jeremias no Anno de 2862

S. Francisco, 20 de novembro de 2862.

Aqui cheguei ontem pelo caminho de ferro. S. Francisco é uma cidade secundária dos Estados-Unidos-Brasileiros. Só tem quatro léguas de comprimento e três de largura. Sua população, conforme o recenseamento feito ontem ao meio dia, é de 3:964:632 habitantes; o de hoje, porém, talvez dê menos por causa de uma epidemia, que começou a desenvolver-se esta noite.

S. Francisco está edificada sobre as rochas graníticas por cima das quais quebrava-se outrora a célebre cachoeira, denominada do Paulo Affonso. Para facilitar a navegação à eletricidade – a navegação a vapor há muitos séculos que foi abandonada por sua morosidade – deu-se ao rio um outro leito, e ficando a cachoeira em seco entulharam-se os seus pegos e profundos abismos para formar-se o assento da cidade.

Neste momento, 4 horas da tarde, chego da casa dos livreiros Dracon, Braga & Cia, que acabam de expor à venda uma obra de suma importância: – a História do Brasil pelo Dr. Jeremias. O autógrafo foi à tipografia esta manhã, e já se acha composto, impresso, encadernado e publicado. É, portanto, a história mais moderna que existe publicada até o presente. Comprei um exemplar por 648 réis. Compõe-se de 162 grossos volumes in folio, impressos em tipos finos, sem margens, sem folhas ou espaços em branco, a fim de economizar o material, e não suceder como faziam os editores da antiguidade, que vendiam mais papel limpo do que livros. Os editores da obra, de que falo, são homens de consciência.

É um trabalho monumental. O Dr. Jeremias gastou dois meses e quatro dias na sua composição! Ocupado constantemente com a sua empresa, não poupou sacrifícios: revolveu as ruínas de Londres, de Paris, de Hamburgo, de Bruxelas, de Lisboa, e de outras cidades tão florescentes nos tempos antigos; em uma palavra todo o lugarejo, onde supunha que poderia encontrar algum esclarecimento foi visitado. Graças aos progressos da civilização hoje são tão fáceis essas investigações! A eletricidade: – tal é a grande alavanca do século.

O Dr. Jeremias é um escritor de vasta erudição. Fala perfeitamente um milhão de línguas, sabe cabalmente dois milhões de ciências, e três milhões de artes e ofícios. Sua História do Brasil – é completa, imparcial, minuciosa, compreende o espaço de 1362 anos, 4 meses, 8 dias e 26 minutos, isto é, começa no descobrimento do Brasil e termina-se no momento em que ele deixara a pena de historiador. Todos os fatos importantes ocorridos nesse espaço de tempo aí são relatados com toda a imparcialidade. Digo “importantes” porque o Dr. Jeremias para não fatigar o leitor não desce às minudências que nenhum influxo teve nos progressos da civilização brasileira.

Para dar uma ideia desta obra, vou abrir ao acaso um de seus volumes, e transcrever algum trecho. Deparei com o volume 94º; abri à pag. 2680. Eis um capítulo; é o MMMMDXCVI; tem por título – Segundo reinado de Bragança – Pedro II.
Transcrevemos esse capítulo. É pouco extenso: o menor da obra.

“Depois da abdicação de Pedro I em 1831 sucedeu-lhe Pedro II, que só tomou as rédeas do governo em 1840, quando foi julgado maior por um ato inconstitucional da assembleia legislativa, não tendo ele ainda a idade legal. Pedro II subira ao trono pisando a constituição: os homens políticos enxergaram neste fato um mau agouro para o futuro; previram que ela não havia de ser respeitada, e desgraçadamente seus pressentimentos não falharam.”

“Este reinado nada oferece de importante. A civilização se não retrogrediu, também não deu um passo para adiante por impulso do governo. E na vida dos povos quando uma nação fica estacionária, parece retrogredir.”

“Misérias e corrupção”: deveria ser a epígrafe deste capítulo.

“O segundo reinado significa um ensaio infrutífero, que fizeram os brasileiros do sistema representativo. A constituição jurada pelo povo em 1825, com suas reformas e interpretações posteriores, nunca foi respeitada. A separação e independência dos poderes foi sempre burlada. O executivo absorvera todos os outros. Era o governo despótico, e tanto mais intolerável quando ele sabia encobrir-se com o manto da constitucionalidade. Os brasileiros aplaudiram, embasbacados com as palavras sonoras, pomposas, sesquipedais do regime representativo.”

“A câmara dos deputados, que deveria elevar-se á altura da honrosa missão, de que se achava encarregada pelo povo, curvava-se submissa ao menor aceno do governo. O senado, composto em geral de homens ineptos, que ali tomavam assento não por serviços prestados ao país, mas por intrigas e influxos reposteiros e criados áulicos, era inimigo de todo o progresso, descuidado, negligente, sem patriotismo, era esse o caráter dominante dos corpos vitalícios, que existiram na antiguidade. Felizmente hoje só há um senado vitalício em Tombocotú, e aí mesmo já apareceu um projeto, que se discute para torná-lo temporário.”

“– — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — inépcia — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — sensualidade — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — dividir para reinar — — — — — — — — — — — — — — — — — — –”

“Em consequência o império estava sempre dividido em dois partidos rivais, constantemente em luta renhida e porfiada; divergente em ideias e princípios? Não; divergentes no sistema de governo? Não; disputavam sobre o poder? Não. Disputavam o poder.”

“Nos altos empregos da justiça dominava a mais escandalosa venalidade. Muitos magistrados recebiam dinheiro das partes litigantes para darem seu voto à favor da que melhor pagava.”

“O povo gemia sobrecarregado de imensos impostos, que tomavam diferentes denominações, para encobrir-se sua odiosidade como tarifas, taxas, selos, diretos, lotação, e outras. As povoações, disseminadas em um vasto território, separadas umas das outras, isoladas por falta de vias de comunicação, empobrecidas pelo vampiro do fisco que sugava-lhe toda a vitalidade, oprimidas pelos mandões, que lhes enviava o governo central para governá-las, definhavam à míngua dormindo indolentes o sono da escravidão sobre as imensas riquezas alastradas no abençoado solo brasileiro, o que não podiam explorar por não terem meios para a exportação de seus produtos.”

“E porque não havia de ser assim? A maior parte das rendas públicas era despendida com a sustentação da corte, com sinecuras ruinosas, em obras puramente de luxo, que só serviam para embelezar a capital. E na verdade o Rio de Janeiro tornara-se para aquele tempo uma cidade importantíssima, como ainda demonstram as suas ruinas. Veem-se ainda os restos das casas de correção e moeda, da casa da misericórdia, do hospício de Pedro II e de tantos outros monumentos; só não existem os da estátua equestre, cujo bronze em 2642 foi vendido à companhia – Progresso Elétrico -, organizada para a abertura do istmo do Paraná.”

“Assim ia o Brasil, quando em 1863 um partido político, desgostoso por ter sido arredado do poder de que estava de posse há 14 anos, excitou uma revolução em todo o império, e então ………………….”

Não posso continuar a transcrição por falta de espaço; mas por este trecho já se pode avaliar o mérito da história do Dr. Jeremias.

Observações do editor (que é muito mais ético que Richard Gear):

  1. Richard Gear não queria entregar a fonte por medo de que seu rival Am(er)iga CD 32 roubasse-lhe os louros. Mas as obras estão disponíveis no link da biblioteca nacional esperando que alguém transcreva os exemplares da História do Brasil, escritas no ano 2000. Exemplares estes que constam a partir da edição 13 de 1868. Há diversas edições desta mesma obra que ainda precisam ser encontradas.  Segue o link: http://memoria.bn.br/DOCREADER/DOCREADER.ASPX?BIB=819379.
  2. A referência da obra é: Santos, Joaquim Felício dos. “A História do Brasil Escripta Pelo Dr. Jeremias no Anno de 2862.” In: O Jequitinhonha: folha política, litteraria e noticiosa. Diamantina, 22 de novembro de 1862, Ano II. Número 47.
  3. O ensaio de Alexandre Eulálio pode ser encontrado em o “Livro Involuntário”, onde foi republicado um ensaio da Revista do Livro, RJ, n. 6, 1957.
  4. De Ana Cláudia Romano há diversos artigos, por exemplo: Arqueologia da ficção científica brasileira: As viagens imaginárias de Joaquim Felício dos Santos. E também Sátira, Utopia e Ficção Científica em A História do Brasil escrita pelo Dr. Jeremias no ano de 2862 e Páginas da História do Brasil, escritas no ano 2000, de Joaquim Felício dos Santos.
  5. A referência de Roberto de Sousa Causo está em Ficção Científica, Fantasia e Horror no Brasil: 1875 a 1950.
  6. A referência de Teresinha Aparecida del Fiorentino está em “Utopia e Realidade: o Brasil no começo do século XX”
  7. A referência dos outros está por aí, procurem.

NOTA DO EDITOR: Novos artigos do pesquisador positrônico Richard Gear continuarão essa série de metacontos, apresentando alguns clássicos conhecidos ou desconhecidos da ficção científica brasileira

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