Resenha: V de Vingança (Por Sid Castro)

O filme que popularizou a máscara que se tornou ícone recorrente em manifestações políticas em todo o mundo teve origem nos quadrinhos, numa distopia – um dos gêneros mais politizados da ficção científica desde ‘Nós’ (de Levgueni Zamyatin), ‘Admirável Mundo Novo’ (Aldous Huxley) e ‘1984’ (George Orwell)

Com os cinemas fechados, os canais de streaming, principalmente a Netflix, Amazon Prime e outros se tornaram a opção mais fácil para quem gosta de filmes. O enorme crescimento dessa mídia durante a pandemia ocupou o vácuo deixado pelas salas de cinema fechadas. Entretanto, à medida que o isolamento prossegue e novos filmes são consumidos pelos expectadores digitais, produções realmente novas e inéditas tornam-se cada vez mais raras, até por conta da quase impossibilidade de filmar, na maioria dos países. Como resultado, os canais investem no relançamento de antigos filmes. É o caso de V de Vingança, que entrou há não muito tempo na grade de exibição da Netflix.

O FILME E O QUADRINHO

Desde 2005, quando foi lançado nos cinemas do mundo, V de Vingança se tornou um filme relevante e não datado, em boa parte pela popularização de seu protagonista, o misterioso V, cuja máscara tornou-se figurinha recorrente em todo tipo de protestos contra autoritarismos ou governos, além de esconder o rosto dos membros do grupo de hackers Anonymous. Mas tudo isso começou bem antes, por ideia do polêmico roteirista inglês Alan Moore e do desenhista David Lloyd.

Dirigido por James McTeigue, V de Vingança, o filme, com roteiro e produção dos irmãos – agora irmãs – Wachowski (Matrix) foi imediatamente rejeitado pelo criador Alan Moore, um dos mais cultuados autores de quadrinhos de sua época. É dele uma série de criações originais como A Liga Extraordinária, Do Inferno e Watchmen, entre outras, cujas versões cinematográficas foram igualmente condenadas pelo radical agora escritor de livros volumosos como Jerusalém. No caso de V de Vingança (no original em quadrinhos V for Vendetta), não foi diferente. Moore pediu para seu nome ser retirado dos créditos, e que o pagamento devido fosse revertido ao desenhista. No entanto, é impossível não associar seu nome a este filme que retrata a Inglaterra de um futuro não muito distante, governada por um ditador estilo Big Brother (do livro de George Orwell, 1984, não do Reality Show…) chamado Adam Sutler (John Hurt). Os cidadãos vivem debaixo de duras leis e censura. Todos são vigiados por uma polícia especial, os homens-dedos, e qualquer ensaio de insurreição é rapidamente reprimido. Propaganda política pró-regime é vista por toda parte e as pessoas são mantidas submissas, sem ação. A graphic novel (romance gráfico, livro em quadrinhos) original foi publicada na era Thatcher, a primeira ministra inglesa, de quem Moore era crítico feroz, mas continua atual, não apenas no Reino Unido atual e em diversos países do mundo, com a ascensão de uma nova direita. Foi usado como referência ao governo Busch, durante o período do filme e pode ser agora, no caso de Trump, nos Estados Unidos. A obra de Moore se passa no ‘futuro’, em 1990.

Em V de Vingança, na noite de 4 de novembro, Evey (Natalie Portman) é salva de uma batida da polícia por um misterioso defensor mascarado, o V (Hugo Weaving, o Agente Smith de Matrix, que fica fantasiado o filme todo). Ele é uma espécie de “terrorista” que nessa ocasião explode a corte criminal de Londres, à meia-noite. Na Inglaterra, 5 de novembro é conhecido como o Dia de Guy Fawkes, um radical católico que, em 1605, foi encontrado num túnel sob o Parlamento Inglês com quase 20 bananas de dinamite. Preso com outros sabotadores, ele foi enforcado e esquartejado, para que servisse de exemplo a quem conspirasse contra a coroa britânica. A máscara que V usa é exatamente igual ao rosto de Fawkes, que se tornou o símbolo da ‘Conspiração da Pólvora’ e lembrado ironicamente como ‘o único homem que entrou no Parlamento com intenções honestas’. Sua efígie, de rosto da traição, virou ícone do anarquismo. V também pode significar Vitória (no contexto inglês, na Segunda Guerra, contra os nazistas) ou Vingança (do italiano vendetta) contra o status quo.

Mas independente das motivações do verdadeiro Fawkes, V segue em frente com seu plano de devolver o poder ao povo, invadindo o canal de TV onde Evey trabalha e colocando no ar uma mensagem incitando revolta. A ideia é concretizar o plano de Fawkes no próximo 5 de novembro – ou seja, ele tem exatamente um ano para planejar a ação.

A parte central de V de Vingança se preocupa em contar a história de V e mostrar a educação de Evey, transformando-a também numa ativista – o que deixou Natalie Portman careca de verdade. Apesar disso, ela continua bonita e ainda rouba o filme. A conscientização política da personagem, e, por consequência de todo uma nação, é a moral do filme (e do gibi), que levanta questões sérias sobre o ato terrorista numa situação extrema como aquela, e que talvez fosse a única opção de resistência (ou vingança) dos oprimidos contra seus opressores.

V de Vingança une elementos de um filme de ação a momentos mais densos, com bons efeitos e um belo visual. A referência à obra-prima de Orwell ganha outras leituras quando John Hurt, que fez o papel principal (homem normal que toma consciência política) na adaptação do livro 1984 (lançado no próprio ano de 1984). Aqui faz o papel do ditador – uma inversão proposital. Qualquer um pode ser um terrorista, qualquer um pode ser um ditador, dependendo de sua posição e poder.

DISTOPIAS

A distopia, como subgênero da ficção científica, aborda uma sociedade que, através do estado totalitário, usa a ciência e a força para controlar e oprimir a população. Pode ter nascido como reação a um otimismo exagerado sobre o futuro. Desde a Utopia, de Tomas Morus (que é mais uma fábula moral) até o futuro utópico de Jornada nas Estrelas, passamos pelo pioneiro Nós, de Levgueni Zamiatin, com seu autoritário governo mundial em que todos são números, romance não por acaso proibido durante o stalinismo soviético (o livro foi lançado em 1924). Ele inspirou, entretanto, o opressivo mundo em guerra constante do Big Brother, onde a história é constantemente reescrita; a novilíngua dita o que pode ser falado ou pensado; e tudo e todos são vigiados constantemente por telas de TV. O livro foi terminado em 1948, no auge da Guerra Fria. Foi a principal inspiração de V de Vingança. Admirável Mundo Novo (1932) de Aldous Huxley mostra uma sociedade mundial premonitoriamente cativa do prazer e do consumo. Perto destes livros clássicos, qualquer utopia mais recente parece suave, como Jogos Vorazes, Divergente e Maze Runner, entre outros. Laranja Mecânica (1962) de Anthony Burgess virou um filme clássico moderno de Stanley Kubrick, assim como Fahrenheit 451, de Ray Bradbury (1953) e O Conto da Aia (1985), de Margareth Atwood, que virou série; todos mostram diversos tipos de opressão que podem ser vividos, sofridos ou imaginados por uma sociedade e indivíduos.

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