Conto: O Preço do Teletransporte (por Fernando Fontana)

Parte 1: Um terrível defeito

Benjamin Cooper andava apressado pelos corredores lotados da Serviços de Teletransporte Patterson e Associados, carregava consigo uma pasta contendo diversos dados e gráficos referentes à campanha de publicidade do projeto Marte, cujo slogan “Marte Seguro e em um Piscar de Olhos” precisava do aval de Richard Patterson, seu amigo, maior acionista e presidente da empresa.

Richard vinha se comportando de forma estranha nos últimos dias, cancelando reuniões importantes, delegando tarefas que normalmente executaria, avoado, completamente diferente do executivo agressivo e incansável que sempre fora.

Era compreensível de certa forma; seu pai, Oliver Patterson, gênio criador por trás da tecnologia de teletransporte e fundador da companhia, havia falecido há pouco menos de um mês, e, embora já estivesse em coma há mais de um ano e sua morte fosse esperada a qualquer momento, tratava-se de um período crucial para a Patterson e Associados, que estava prestes a se transformar na empresa de maior valor no mercado de ações.

A colonização de Marte vinha se arrastando a passos de tartaruga nos últimos anos, tendo como seu maior empecilho a distância e o alto custo do transporte de insumos, equipamentos essenciais e pessoal especializado. O surgimento do teletransporte mudou as regras do jogo, e assim que fosse concluída a instalação da primeira estação de teletransporte em solo marciano, as peças de reposição poderiam sair de um estoque em Houston e surgir na desesperada colônia de Nova Washington em um piscar de olhos; bem, se levarmos ao pé da letra, um pouco mais, aproximadamente 8,5 segundos, mas para efeitos de propaganda, a licença poética era aceitável.

Por essa razão, ao adentrar a antessala onde ficava a secretária de Richard, Ben Cooper estava determinado a contornar a situação, ainda que não soubesse exatamente do que se tratava.

– Grace – perguntou para a secretária, uma mulher de meia idade que, ao contrário da maioria, recusava-se a esconder os anos de vida através do milagre da cirurgia plástica moderna, razão pela qual, Cooper especulava, teria sido indicada para o cargo pela esposa de Richard – ele está?

– Sim, senhor Cooper- ela fez um movimento com a cabeça indicando a porta que se encontrava fechada e com uma luz vermelha acesa no painel – ele está, mas se trancou no escritório logo que chegou e disse para cancelar todos os compromissos, não saiu desde então.

– Todos os compromissos? Ele cancelou o das 14 horas com o representante do Departamento de Publicidade Governamental?

– Todos, senhor Cooper, esse também.

– Deus do céu, eu preciso falar urgente com eles. Tem ideia do quanto demorou para conseguir marcar essa reunião?

Grace não respondeu, sua expressão indicava que percebia o problema, mas que não tinha ideia de como solucioná-lo.

– Chame-o Grace, diga-lhe que estou aqui e que preciso vê-lo.

– Sim, senhor – respondeu a secretária, apertando o botão do comunicador – senhor Patterson, o senhor Cooper está aqui para vê-lo.

Passaram-se alguns segundos sem que qualquer som saísse do comunicador – Senhor Patterson – repetiu Grace – está me ouvindo? O senhor Cooper insiste em vê-lo.

Mais alguns segundos se passaram até que um impaciente Cooper apertasse o botão e esbravejasse: – Droga, Patterson, abra essa maldita porta ou eu juro que coloco ela abaixo!

– O senhor é o único que tem coragem de falar com ele assim – disse Grace, e por um momento pareceu que o blefe de Cooper não traria qualquer resultado, até que a luz do painel localizado na porta mudou de vermelha para verde e ouviu-se o som de uma tranca sendo aberta.

– Parece que ele não quis brincar com a sorte – Cooper respondeu sorrindo pouco antes de passar pela porta e entrar no escritório, onde se deparou como uma cena nada usual; Richard, o sempre impecável Richard, barba por fazer, gravata afrouxada, olheiras pronunciadas, três arquivos de texto holográficos abertos sobre sua mesa, copo vazio e garrafa de uísque pela metade sobre a mesa.

Acima dele, os três quadros de sempre, o do centro com uma foto de seu pai, em frente ao primeiro modelo de teletransporte. O velho segurava Schrödinger, o gato que teve a honra de ser o primeiro ser vivo a ser teletransportado com sucesso na história da humanidade. Antes dele, outros nove felinos terminaram como uma pasta ensanguentada no teletransporte receptor.

O quadro da esquerda retratava uma cena da série Jornada nas Estrelas, em que cinco integrantes da nave Enterprise estavam no teletransporte, prestes a serem enviados para explorar algum planeta misterioso. E, finalmente, à direita, o quadro que Cooper menos gostava, um pôster de um filme antigo, a Mosca.

Ben se aproximou da mesa, atravessou a mão pelos arquivos holográficos, pegou a garrafa e a observou – vejo que decidiu dar uma festinha e não me convidou.

Richard levantou, contornou a mesa, retirou a garrafa da mão de Ben e encheu o copo com uma dose generosa antes de perguntar – o que você quer, Ben?

– O que eu quero? Engraçado você perguntar, que tal começar me explicando por que desmarcamos a reunião dom o Departamento de Publicidade?

– Podemos remarcar, tenho coisas mais urgentes para resolver.

– Mais urgentes, você disse? Rick, nós estamos prestes a mudar o rumo da colonização interplanetária, nossas ações estão valendo ouro, eu estou com a campanha publicitária mais importante das últimas décadas, e você não parece mais você. Caramba, olha só para sua aparência, parece que você não dorme há dias.

– Eu não durmo há dias – Richard disse após dar um gole no uísque.

– É isso, chega, eu sou seu melhor amigo, pelo menos gosto de pensar que ainda sou, então não vou sair daqui até você me dizer o que está acontecendo.

– Você quer mesmo saber?

– Você sabe que sim.

– Ótimo – Richard foi até o armário sem dizer uma palavra, abriu e pegou outro copo, colocou dois dedos de uísque e o entregou para o amigo – Aqui, beba!

– Não, obrigado, é cedo demais para…

– Beba! Confie em mim, você vai precisar antes de ouvir o tenho a dizer.

– Ok, agora você está me deixando realmente preocupado – deu um pequeno gole no uísque, bebida de primeira, mesmo assim, fez cara feia, nunca foi um apreciador de destilados.

– O que eu vou contar precisa ficar somente entre nós, não pode sair daqui.

– Pode deixar, eu mantenho segredo.

– Tem que ficar só entre nós, só entre nós, você me ouviu? Pelo menos até eu pensar no que vamos fazer – Richard falou com os olhos vermelhos e o hálito forte da bebida.

– Homem, eu juro por tudo que é mais sagrado, mas diga logo de uma vez o que aconteceu.

– A companhia, nós, tudo está prestes a desmoronar.

– Do que você está falando? Nós nunca estivemos tão…

– Os teletransportadores, eles possuem um defeito, um defeito grave, Ben.

– Rick, se acalma, ok? Isso simplesmente não faz o menor sentido; as máquinas passam por manutenção regular, há protocolos rígidos de segurança e elas são operadas por técnicos com capacitação adequada. Até hoje, não registramos um único acidente. É mais seguro do que voar, lembra?

– Isso é uma perda de tempo, você não vai acreditar até eu lhe mostrar.

– Mostrar o que?

– Você vem comigo, o hotel fica aqui perto, são menos de dois minutos com o meu Hovercar.

– Hotel? Quem está no hotel, Rick?

Richard não respondeu, apertou o botão do comunicador em sua mesa – Senhorita Grace, eu e o senhor Cooper estamos de saída. Vamos demorar para retornar, talvez nem retornemos.

– Sim, senhor Patterson – a voz de Grace respondeu.

– Vamos pelo meu elevador privativo, Ben.

– Não, espera, aconteceu algum acidente? Alguém se feriu utilizando um dos nossos teleportadores? Se foi isso, tudo bem, é ruim, mas não é um desastre, acidentes acontecem todo o tempo, cedo ou tarde teríamos que lidar com algum.

– Vai além disso, Ben, eu me precipitei – Richard disse chamando o elevador para chegar até ao Hovercar – foi culpa minha, tudo culpa minha.

A porta do elevador abriu e ambos entraram, Richard acionou o botão da cobertura.

– O acidente? O acidente foi sua culpa? – Perguntou Cooper – Rick, diferente do seu pai, você é um administrador, um homem de negócios, entende dessas máquinas tanto quanto eu, ou seja, nada. Elas funcionam, as pessoas têm feito uso delas nos últimos nove meses, nós mudamos o mundo. E agora, vamos mudar Marte, não é hora para entrar em desespero por conta de um acidente, se é que houve um acidente.

– Meu pai sabia, Ben, ele sabia que havia algo de errado, por isso ele não queria permitir o teletransporte de seres vivos, por isso pediu mais testes mesmo com Schrödinger chegando íntegro do outro lado. Vamos precisar falar com o sócio do meu pai, ele vai poder nos ajudar.
A porta do elevador abriu, Richard acelerou o passo em direção ao Hovercar.

– Você não está falando sério, falar com Henry Wright?

– Você mesmo disse, nós não compreendemos as máquinas, mas ele ajudou meu pai a construí-las, ele é o responsável pela programação.

– Ele é o louco que ganha milhões com teletransporte e vive em uma cabana no meio da floresta, incomunicável. Se precisa de ajuda, fale com o nosso pessoal.
Richard e Benjamin entraram no Hovercar, que como todos os outros do gênero, não possuía volante visível, uma vez que quase ninguém dirigia naqueles dias – Destino, Graham Hotel, velocidade alta – falou Richard.

O Hovercar elevou-se lentamente até atingir a altura adequada e partiu em uma das vias aéreas cadastradas.

Richard suspirou – Ben, o teletransporte é uma máquina que une diversos conceitos e tecnologias diferentes. Nenhum de nossos especialistas é capaz de compreender o todo. É uma medida de segurança, assim, o segredo de como ele funciona fica em nossas mãos.

– Quer dizer que vendemos um produto que não somos capazes de entender? Isso é ridículo.

– Acredite, é a mais pura verdade, juntamos as peças, programamos, vendemos, mas não há na empresa um único homem que consiga entender como funciona em sua totalidade o teletransporte.

– E Wright compreende?

– Acho que nem ele, não tudo, mas, o projeto, ele todo, com cada especificação, cada detalhe, está guardado em um cofre no Banco Central. Para ter acesso a ele, é necessária a autorização da maioria do conselho diretor, ou dos dois maiores acionistas. Que no momento somos…

– Você e Wright – interrompeu Cooper.

– Isso, eu e Wright.

– Fale com o Conselho Diretor, é melhor.

– Assim que você ver a pessoa que quero lhe mostrar, você vai mudar de ideia, quanto menos gente envolvermos, será melhor.

– Está certo, Rick, eu vejo seja lá quem você queira me mostrar naquele hotel, mas, depois, você vem comigo e vai conversar com a Dra. Marshall. Eu acho que a pressão da morte do seu pai e de ter que assumir a empresa não lhe fez bem.

– Claro, Ben, por que não? Saímos do hotel e você me leva para falar com a Dra. Marshall, ela me prescreve alguns comprimidos e tudo vai ficar bem.
Cooper percebeu o sarcasmo, mas realmente começava a acreditar que o amigo estava ficando fora de si.

Ambos ficaram em silêncio enquanto o Hovercar pousava na cobertura do Graham Hotel. Ao saírem do veículo foram recepcionados por um funcionário de cabelos brancos e devidamente trajado com o uniforme vermelho e dourado – Bom dia, senhor Patterson.

– Bom dia, Phil, nós estamos indo para o meu quarto – Richard respondeu, já se encaminhando para o elevador.

– Perfeitamente, senhor Patterson, farei uma checagem nos sistemas de seu Hovercar.

– Ben, preciso que você me faça um favor, ligue para minha casa e peça para falar com minha filha.

– Com Rachel?

– Eu tenho outra filha?

– Certo, e digo o que, que o pai dela enlouqueceu?

– Não, apenas pergunte se ela já fez a lição de matemática.

Ambos entraram no elevador, Richard pressionou o botão do décimo andar – Está bem, eu ligo, mas vou te dizer uma coisa, a essa altura do campeonato eu ficaria feliz se nesse quarto estivesse uma amante sua. Ligação, Residência Rick – ele falou próximo do comunicador em seu pulso.

– Ligando, residência Rick – a voz feminina do comunicador respondeu.

– Olá, Ben – disse ume pequena imagem holográfica do rosto de Susan, a esposa de Richard – alguma novidade?

– Oi, Susan, novidade? Não, muito trabalho, como sempre.

– Nem me fale, o Rick nunca ficou tanto tempo fora de casa.

– Escuta, você poderia chamar a Rachel um minutinho?

– Posso, claro. Posso perguntar o porquê?

– O Rick me pediu para perguntar se ela fez a tarefa de matemática.

– E por que ele mesmo não pergunta?

– Ele está em reunião.

– Outra reunião? Ben, você sabe de alguma coisa que eu não sei? – Susan perguntou em tom aflito.

– Não, Susan, acredite, eu sou o último a saber das coisas por aqui. Fico preso no departamento de propaganda e publicidade e quando saio é para ir para casa.
O elevador chegou no décimo andar, Richard e Cooper saíram para o corredor.

– O Rick está estranho – Susan disse – sei que o projeto Marte está deixando vocês muito ocupados, mas ele mal tem falado conosco, tem chegado tarde em casa todos os dias. É o trabalho? Tem algo de errado no trabalho?

– Não, Susan, quero dizer, sim, um pouco, estamos empolgados, você sabe, Marte, viagem interplanetária, é bastante responsabilidade, e isso tem deixado todo mundo meio tenso.

– Você não mentiria para mim, mentiria, Ben?

– Claro que não, já experimentou perguntar para sua espiã?

– Qual espiã?

– Grace, quem mais?

– Ela não é minha espiã, e é uma excelente secretária.

– Que por uma feliz coincidência é uma fanática religiosa que se recusa a fazer plásticas.

– Ok, Ben, vou chamar a Rachel – Susan interrompeu a conversa.

– Eu espero.

Ben Cooper colocou o comunicador no mudo – Espero que isso seja realmente necessário, Rick.
– Sim, é, apenas pergunte para Rachel e desligue.

O rosto de Rachel, uma menina de doze anos, olhos e cabelos negros como a noite, apareceu no comunicador – Oi, Tio Ben, minha mãe disse que o senhor queria falar comigo.

– Não é nada demais, seu pai quer saber se você fez a lição de matemática.

– É só isso?

– Isso, é só isso, nada demais, como eu disse.

– Ele sabe que sim, eu nunca deixo de fazer.

– Que bom, vou passar o recado. Se cuida, garota, logo você vai completar treze anos.

– Daqui um mês e vinte e três dias, o senhor vai na festa?

– Claro, não perderia por nada. Até logo.

– Tchau – a jovem respondeu.

– E então, Richard, para que tudo isso?

– Venha comigo, Ben – Richard fez um gesto com a mão indicando o caminho.
Caminharam até chegar na frente do apartamento 16, onde Richard tocou a campainha.

– Rick, a sua secretária está preocupada, sua esposa já percebeu que tem algo de errado, os boatos correm rápido nos corredores da empresa. É bom você ter uma ótima explicação para isso tudo.

A porta do quarto se abriu, e os dois puderam vislumbrar uma menina de cabelos e olhos negros como a noite, com aproximadamente doze anos de idade.

– Oi, pai. Oi, tio Ben, já estava ficando com saudades.

FIM DA PARTE 1


 

Fernando Fontana é formado em História, escritor e membro do CLFC; publicou o seu primeiro romance “Deus, o Diabo e os Super-heróis no País da Corrupção” pela Editora Viseu em 2018. Seu mais recente trabalho é a coleção CASOS SUPERNATURAIS, livros de bolso com os personagens criados em seu universo de super-heróis brasileiros no país da corrupção. O primeiro volume, “Procura-se ELVIS Vivo ou Morto”, foi lançado em abril; o segundo volume sairá até o final do ano: “Os Marcianos Também Traem”.

https://superninguem.com.br/

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