Artigo: O Retorno da Hegemonia (Por Alice Diniz)

Sucesso de vendas e crítica na década passada, Clinton Davisson Fialho explica por que demorou dez anos para lançar uma segunda edição de Hegemonia – O Herdeiro de Basten e diz que próximo livro está pronto.

Era final da primeira década do novo milênio. O Brasil ainda se encantava com o Orkut e suas comunidades onde pessoas se encontravam virtualmente para debater e compartilhar seus interesses. Foi em uma comunidade de ficção científica que Clinton Davisson divulgou seu livro Hegemonia – O Herdeiro de Basten. A capa havia sido criada por Osmarco Valladão e fugia dos padrões da época. Lembrava mais o cartaz de um filme ou mesmo de uma HQ. O livro foi lançado no final de 2007 e depois no início de 2008 e alcançou ótimas vendas, além de elogios da crítica. Foi um grande sucesso da então Editora Arte & Cultura e um dos finalistas do Prêmio Portugal-Telecom de 2008. Em 2010, o livro esgotou os 1000 exemplares da primeira edição. Era apontado como um dos escritores mais promissores de sua geração e todos esperavam por uma continuação da história e dos personagens de O Herdeiro de Basten. Em 2012, a novela Hegemonia – A Esfera Dourada foi um dos destaques da Coletânea Space Opera, da Editora Draco. As abordagens criativas e os pontos de vistas bem diferenciados das duas obras indicavam que o universo criado por Clinton Davisson Fialho era amplo e complexo. O fandom aguardava ansioso por um novo romance da saga Hegemonia.

De repente, veio o silêncio. Nem uma segunda edição foi lançada e muitas livrarias tinham demanda do livro e não conseguiam encontrar para vender. Agora, uma segunda edição revisada chega na Amazon e o autor afirma estar com dois romances inéditos, entre ele, a continuação de O Herdeiro de Basten, chamada Vellanda, que demorou 10 anos para ficar pronta. O que será que aconteceu?

Em uma entrevista exclusiva, o autor fala de como foi sua volta por cima para o cenário literário nacional e as inspirações que levaram Hegemonia a ser considerado um dos lançamentos mais importantes de sua época.

A história de um futuro distópico onde os humanos são os vilões

Mas qual é a história desta saga? O autor afirma que gosta de definir a série Hegemonia como uma mistura de Matrix com O Senhor dos Anéis. Será verdade? A história nos levava para um futuro muito distante no qual a humanidade construiu uma esfera Dyson, obra de engenharia imaginada pelo recém-falecido físico, Freeman Dyson, ou seja, uma redoma em torno do sistema solar para aproveitar toda a energia do sol. Com todo este poder, os humanos ou Dysonianos, não apenas evoluíram com uma tecnologia avançada, como se tornaram um forte estado imperialista conhecido como A Hegemonia. Protegidos por poderosas armaduras para sobreviver no ambiente inóspito do espaço e de outros mundos, os humanos acabaram se mesclando com essas suas roupas e seus computadores. Desprovidos da necessidade de se alimentar, de interagir socialmente e até mesmo de se reproduzir, os humanos perderam lentamente a humanidade. São seres poderosos, mas praticamente desprovidos de emoção, motivação e vontade de viver. Lentamente, toda a raça humana começa a migrar suas próprias consciências para realidades virtuais o que ocasiona um problema grande para o governo da Hegemonia.

Neste contexto, temos o protagonista Ron, que apesar de ser humano, não nasceu na Esfera Dyson e sim em Eloh, um planeta artificial de proporções gigantescas, construído para que os humanos pudessem segregar os imigrantes dos sistemas solares conquistados e, que, por um acaso, quisessem tentar a vida na capital da galáxia. Sim, os humanos se tornaram imperialistas e fascistas, com um alto grau de racismo contra as outras milhares de espécies existentes na galáxia.

Ron se sente deslocado porque é uma espécie de híbrido. Por mais humano que seja, seus ancestrais viveram em Eloh por tanto tempo que sua dependência das armaduras, que chamam de Derma, é bem menor. Ele é mais forte e mais inteligente que a média dos humanos de Dyson e isso, ao invés de lhe trazer benefícios, acaba surtindo o efeito contrário. Ron, na verdade, ainda preserva um pouco da humanidade original e isso incomoda os dysonianos. Cansado e revoltado com o ambiente da Hegemonia, ele resolve voltar para Eloh, após um longo período de estudos na “Capital”. O problema é que, em sua terra natal, ele tem uma relação muito mal resolvida com seus irmãos, que são rei e rainha da região gelada de Eloh, conhecida com Basten. Afinal, por serem humanos, gozam de privilégios sobre as demais criaturas de Eloh.

É quando Shodan, seu irmão, recebe um pedido de ajuda de um grupo de gelfos, criaturas peludas que evoluíram de marsupiais. Uma de suas vilas está sendo atacada por uma terrível horda de dragões vermelhos, uma raça poderosa e beligerante. Por conta de uma dívida antiga, Shodan resolve ajudá-los, mas isso envolve a comitiva real em uma longa viagem do Norte de Eloh até o Sul, na vila dos gelfos. E o que parecia uma simples questão diplomática, se transforma em uma trama intrincada em um planeta onde ninguém confia em ninguém.

Em meio a mistérios e tragédias, Ron vai encontrar amigos e inimigos e desafios cada vez mais assustadores, com cenários fantásticos repletos do famoso sense of wonder (que pode ser traduzido por uma sensação de deslumbramento) encontrado nas melhores histórias do gênero, como esculturas gigantescas feitas de água, navios enormes em forma de pássaros, monstros marinhos do tamanho de cidades e civilizações complexas como a dos frânios, divididos em duas castas antagônicas.

Hegemonia é um livro que consegue misturar perfeitamente a ficção científica hard. Assim, elementos como física quântica, computadores avançados e conceitos de relatividade estão integrados na trama de forma orgânica, com elementos de alta fantasia, uma vez que parte dos seres que habitam Eloh, vindos de várias partes da galáxia, lembram criaturas mitológicas, como fadas, sereias, dragões e até deuses olimpianos.

O protagonista, Ron, é movido pela curiosidade e por certa perplexidade, pois, após viver anos no lugar mais avançado da galáxia, precisa lidar com sociedades e indivíduos que não tem acesso nem a tecnologia avançada da Hegemonia, como também não tem noções básicas de política, medicina, higiene ou mesmo ética.

O livro vai construindo meticulosamente o contraste entre Eloh e Dyson, traçando um paralelo entre as relações de primeiro mundo e terceiro mundo. Como toda boa ficção científica, a história fala de nossa própria sociedade.

Clinton também capricha na ação, no humor e na aventura. As cenas de batalha são de tirar o fôlego. Os dragões ainda tem o poder de regenerar suas feridas, o que os torna quase indestrutíveis, mas tudo indica que um inimigo ainda pior está por trás de tudo.

Desde o lançamento em 2007, havia um consenso entre os críticos sobre a sensação ao terminar de ler o livro: se fosse lançado em outro país, já seria um sucesso estrondoso e teria virado filme. A realidade brasileira para Clinton Davisson não foi bem assim. Em entrevista, ele explica as razões, que segundo ele, podem ter prejudicado a divulgação do livro e retardado a segunda edição.

Alice – Só conheci você pessoalmente em 2014, em Juiz de Fora, junto com o falecido Max Mallman. Ele disse que você e a paulistana Cristina Lasaitis, eram os autores mais promissores da geração de vocês. O que houve?

Clinton – Eu gosto muito da Cristina Lasaitis como pessoa e como autora, mas não tenho a mínima ideia do Porquê de ela não ter lançado mais coisas nos últimos anos. Acho que ela faz mais falta ao mercado literário que eu. Mas tem que perguntar isso para ela. Quanto a mim, a morte do Max simboliza muito a minha frustração com o mercado literário. Ele era um cara zen, super talentoso, não deixava que o ego ou a vaidade lhe subisse a cabeça, era sempre humilde, não entrava nas tretas, não respondia às provocações, não falava mal de ninguém. Tento seguir o exemplo dele. Mas sobre o mercado, eu consegui esgotar a edição dos meus dois primeiros livros. O Fáfia, lançado em 1999 e o Hegemonia em 2007. Depois disso tive problemas pessoais, inclusive de saúde e acabei tendo que escolher entre escrever e ter um “emprego normal”. Escolhi o segundo. Foi um erro meu. Não há conspirações ou grandes mistérios. Ninguém nunca tentou me prejudicar. Apenas tomei decisões erradas e resolvi dar um tempo. Agora estou voltando com tudo e estou muito feliz por isso.

Alice – Acha que ser presidente do CLFC – Clube de Leitores de Ficção Científica do Brasil por oito anos prejudicou sua carreira já que você não publicou nada sei durante toda a sua gestão?

Clinton – Acho que não teve relação. Ao contrário, o CLFC me ajudou a não perder o contato com este mundo enquanto eu não conseguia produzir nada. É engraçado, porque muitos ex-presidentes reclamam do desgaste. Já eu adorava ser presidente. Só saí mesmo por problemas de saúde, porque não estava conseguindo dar conta do que precisava ser feito. E lembro que tentei seguir a cartilha do Max de evitar as tretas ao máximo e quando tinha alguma, eu me divertia com elas. Eu só tenho que agradecer ao CLFC por tudo. Gostaria de ter feito mais, mas tenho orgulho do que consegui fazer.

Alice – Houve uma polêmica porque você teria dito que o leitor de ficção científica era mais exigente que o normal. É verdade?

Clinton – Não, não é verdade. Eu disse que o leitor de ficção científica tinha características próprias, como por exemplo, gostar de ciências. Mas não era regra. Alguém com muita maldade no coração e pouca inteligência no cérebro interpretou isso como se eu estivesse dizendo que leitor de ficção científica fosse mais inteligente ou mais exigente que o de fantasia, por exemplo. Isso seria uma grande bobagem. Tenho um amigo que é matemático e tem doutorado em inteligência artificial. Acredite se quiser, ele detesta ficção científica e é fanático por samba. Ele sozinho já quebra todos estes estereótipos de que uma pessoa estudiosa deveria odiar samba e pagode. Por quê? Porque são artes provenientes da cultura negra? Racismo puro.

Alice – Ainda sobre polêmicas, você foi finalista do prêmio Portugal Telecom em 2008 com um livro de ficção científica, no caso, este o Hegemonia – O herdeiro de Basten, que está relançando agora. O que você achou da criação da categoria “literatura de entretenimento” do prêmio Jabuti no qual incluem literatura de ficção científica, fantasia e terror na categoria?

Clinton – Como diria o Spock de Jornada nas Estrelas, eu entendo, mas não significa que concordo. Eu entendo que deve ser algo parecido com o que está acontecendo com o Oscar, que, como está tendo uma audiência baixa, pensa em criar uma categoria de “Oscar de melhor filme popular”. Se você pensar em termos comerciais, os grandes sucessos revolucionários são aqueles que trazem para determinado mercado, pessoas que não costumam frequentar este mercado. Assim, os Beatles nos anos 60 fizeram os jovens comprarem discos, algo que não era tão comum. Star Wars fez crianças e adolescentes comprarem ingressos para ir ao cinema e Harry Potter fez os jovens comprarem livros. Os três exemplos citados são obras que se impuseram pela qualidade, embora sempre vai ter gente para dizer que Beatles não é música, que Star Wars não é cinema e que Harry Potter não é literatura. Assim como Adorno dizia que Jazz estragou a música clássica. Os revolucionários sempre vão ter um lado de bucha de canhão também. Mas na cola deles, o mercado se abre. Aí, vem imitações sem o mesmo grau de qualidade, mas também vem coisa muito boa, que só tiveram oportunidade porque alguém foi lá e expandiu o mercado. No caso do Oscar e do Jabuti, é uma forma do prêmio pedir socorro para o mercado. Mercadologicamente é uma ideia interessante. O que me incomoda nisso não é a ideia de pessoas reduzirem ficção científica a uma literatura unicamente de entretenimento, mas o contrário, a ideia de pensarem Machado de Assis ou James Joyce como autores que não têm capacidade de entreter, aí, sim, é uma injustiça muito maior.

Alice – Quais são suas maiores influências na literatura?

Clinton – Eu sempre tive um gosto muito eclético. Gosto tanto de James Joyce quando de Sidney Sheldon. Stephen king, Douglas Adams, Monteiro Lobato, Clarice Lispector, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Frank Herbert, Anne Rice, Joan D. Vinge, Herman Melville, Tolkien, Alexandre Dumas, Bram Stocker, são nomes que me vem a cabeça sem fazer esforço. Dos amigos, gosto muito do jeito que o Max Mallman conseguia imprimir ritmo, aventura e humor. Tem autores amigos, que eu morro de inveja do jeito que escrevem, embora ambos tenham estilos diferentes. No caso, a Cristina Lasaitis, que consegue ter um vocabulário forte e ao mesmo tempo contar a história de forma eficiente, o Fábio Madrigal Barreto, que consegue ter um estilo muito poético e ao mesmo tempo objetivo e o Gerson Lodi-Ribeiro que sabe criar atmosferas como ninguém e a forma que ele tem de sintetizar a história com muita objetividade sem deixá-la simplista. Tem muita gente boa que merece ser lida, com certeza estou esquecendo uma dezena deles. Por isso estou me limitando a falar os que eu invejo mais, pode ser?

Alice – A versão atual do livro tem 130 páginas a mais que a versão de 2007. Você usou o termo “remake” para esta segunda edição. Por quê?

Clinton – Terminei o livro correndo em 2007. Tive que interromper por um tempo a escrita porque meus filhos gêmeos nasceram em maio e ficaram internados com infecção hospitalar por um mês. Foi um momento muito tenso da minha vida. O convite da Editora Arte & Cultura foi um presente divino. Vou ser grato a eles para sempre por este convite que aconteceu exatamente um mês depois que os meninos chegaram em casa. Mas tivemos problemas. Morava em Macaé-RJ e tínhamos um traficante como vizinho. Precisamos mudar correndo porque o choro das crianças irritava o bandido e ele ficava nos ameaçando. Hoje ele já foi morto pela polícia, mas foi um momento tenso. Mudamos de lá meio no desespero e depois consegui terminar o livro correndo. Foi uma decisão idiota. Tenho certeza que, se pedisse um prazo um pouco maior para a editora, eles teriam me dado. Era só explicar o que estava acontecendo. Mas eu era um autor iniciante e inexperiente. O fato é que o final do livro realmente ficou muito corrido. Mesmo assim, a grande maioria da crítica e do público gostou. Quando o livro esgotou eu quis refazer com calma a segunda edição.

Alice – Você está satisfeito com o resultado final?

Clinton – Sim, e mesmo que não estivesse, espero nunca mais reescrever um livro na vida. Tive que reescrever praticamente o Hegemonia todo e agora estou terminando de reescrever o Fáfia, que publiquei em 1999. É muito preciosismo. Chega! Quero olhar para frente!

Alice – Além do Herdeiro de Basten, há uma continuação do Hegemonia que é esperada há muito tempo. Já está pronta?

Clinton – Sim, não é uma continuação propriamente dita, mas uma prequel do Herdeiro de Basten que já está pronta e em fase de revisão. Chama-se Hegemonia – Vellanda e tem uma série de livros de terror, que estão registrados desde 2011, mas eu nunca tinha conseguido terminar. Mas vai sair antes do fim da quarentena do Coronavírus. Eu só precisava lançar essa segunda edição/reboot do primeiro livro antes, porque tem mais de cinco anos que eu escuto gente querendo comprar o bendito livro e não tinha para vender.

Alice – O que pode adiantar para a gente destes livros?

Clinton – Sobre o de terror, não posso falar nada ainda. Mas o Vellanda é exatamente isso: um prólogo de O Herdeiro de Basten, o incidente que move a história, só que do ponto de vista dos gelfos, que são os marsupiais coadjuvantes no primeiro livro. Sempre achei que mereciam uma história só deles. Escrevi em parceria com uma amiga, a Lisa Sukys. Eu dei uma ideia, ela desenvolveu. Era para ser um conto despretensioso só dela. E eu resolvi aproveitar para expandir o mundo dos gelfos e daquela região do planeta Eloh. Acabei me empolgando e fiquei 10 anos escrevendo o livro que ficou maior que o Herdeiro de Basten. Ficou um livro bem diferente, cheio de camadas e acho que ficou bem atual. Pois fala justamente deste conflito entre ciência e religião que anda tão em voga nos dias de hoje.

Alice – Mas voltando a falar de O Herdeiro de Basten. Quem já leu, o que vai encontrar de diferente nesta versão?

Clinton – Acho que, além de um final mais elaborado, consegui dar mais camadas aos personagens secundários. Mostrei mais do que é Dyson, o mundo da Hegemonia e criei um background melhor para a sociedade dos gelfos. Deixei menos pontas soltas também. No mais, é o mesmo livro, a mesma história. Não acho que fiz como George Lucas na trilogia clássica de Star Wars, que colocou novas cenas com novos efeitos especiais. Acho apenas que terminei um livro que, na época, não tive oportunidade de terminar como queria.

Hegemonia – O Herdeiro de Basten por Clinton Davisson

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