CONTO: Projeto Janus

Era muito costumeiro para Andréia Fidelis receber ligações perturbadoras como atendente da emergência da polícia carioca. De ligações em ocorrências no momento em que aconteciam ao envolver os mais tenebrosos tipos de crimes, a trotes intencionais e infantis de desocupados que desejavam apenas entulhar o sistema de deliberadas calúnias contra indesejados. Todavia, naquele 10 de abril, a ligação fora a mais insólita que poderia se imaginar. Um homem que se identificava por Machado Fontes estava visivelmente transtornado ao telefone, em prantos, alegando ter acordado preso num banheiro ao lado do corpo de uma idosa desconhecida. A anciã vestia um vestido rosa, tinha cabelos encaracolados e fitava o vazio ao teto com olhos vitrificados. Ela tinha aliança e um colar no pescoço sugerindo ser de boa posição social.

– O senhor poderia tentar verificar se ela tem alguma identificação?

– Estou acorrentado a uma privada entupida. Mas vou tentar esticar meus pés até a bolsa dela.
Então ouviu Andréia um ruído dele ao telefone se movimentando e a seguir o barulho de zíper sendo aberto sob sua respiração ofegante.

– Aqui diz Filomena Nogueira, ela tem 73 anos. É casada com um promotor aposentado. Tem aqui na carteira fotos antigas dela com o marido com eles num tribunal.

– Certo. Porém, não identifico a localização de sua ligação. Preciso de uma referência de onde está. Tente pela brecha da janela.

– Senhora, estou falando baixo, pois nem português deveria falar. Assim como espanhol, mandarim o português fora proibida pelos Estados da União Inglesa.

– Perdão, senhor? – ela indagou, perplexa. Aquilo soou uma loucura enorme.

– Sou um dos últimos poliglotas que tenta proteger a diversidade linguística e cultural no mundo. Não tenho tempo pra explicar e digo apenas isso estando ciente do crime, uma vez que a senhora atendeu falando em português. Por isso, cuidado, pois a senhora também está cometendo crime. Caso me liberte prometo entregar alguns livros em português e mesmo em mandarim! Venham me prender por tráfico de produto cultural ilícito, mas me tire daqui!

Andréia não sabia se ria ou desligava. Porém, ainda que aturdida tentou dar seguimento ao atendimento. Sem saber onde ele estava e como parou lá, o homem se arrastou até que um barulho de corrente se movendo deu lugar a de uma janela se abrindo. Ele comentou estar amarrado aos pés e dizia que “naquele mundo” igualmente a produção intelectual e artística era proibida, caso não tivessem uma licença da CIC (Central Inglesa de Cultura) que liberava apenas poucas classificações de licença cultural a indivíduos selecionados mediante critérios restritos e avaliações que atendessem os requisitos da propaganda da língua universal. Ele temia ter sido sequestrado por policiais corruptos do CIC afim de chantageá-lo por tráfico de material cultural ilícito, como críticas sociais e ficções análogas. Fora quando ele resolveu dizer algo.

– Acho que identifiquei onde estou! Parece ser em Ipanema, pois vejo dentre os prédios a lagoa Rodrigo de Freitas. Prometo entregar os livros, mesmo que jure não conhecer os verdadeiros nomes por de trás dos pseudônimos. Talvez as ideias possam ser recicladas em apropriação assimilativa pelas corporações da Indústria da Informação. E sei onde há até um alcorão em árabe e uma Torá em…

– Senhor… – ela interrompeu – peço para que se foque em maiores detalhes de sua localização. O senhor usou alguma droga entorpecente ou alucinante?

– Não… Não! Nem fui à farmácia hoje! Porém, identifico daqui um prédio verde… Sem janelas. Sim, é o prédio novo daquela rua onde tinha o condômino Leonardo Da Vinci.

Ao ter acesso àqueles dados, Andréia identificou a localização e solicitou imediatamente viaturas ao local para socorrer um homem em confusão mental que parecia em cárcere privado.

Todavia, enquanto o procedimento era aberto o homem murmurou tenebroso sobre ruídos de pessoas abrindo a porta do apartamento onde estava. Elas pareciam estar voltando.

– Olha, precisam ser rápidos. Mas vou ter que falar na nova norma inglesa da língua universal.

– O senhor consegue ver quem são?

– Um está uniformizado com as insígnias do CIC, e a polícia secreta da informação e cultura. Meu Deus! Eles vão me torturar, senhora! Rápido!

– Eles estão quase aí senhor. Preciso que se acalme. Talvez o senhor esteja em estado de choque e por isso esteja tendo um surto psicótico!

Porém, ao terminar de falar aquilo ela ouviu o barulho da porta abrindo e gritos quando um homem falava um inglês diferente e quase intraduzível e então a ligação caiu.

Andréia então fora notificada pela viatura. Os homens desceram do carro e sacando as armas passaram pelo porteiro do prédio enquanto um terceiro policial interrogava o porteiro sobre as alegações suspeitas e imagens de câmeras.

Entretanto, mesmo verificando todos os andares, nada fora achado, mesmo verificando as câmeras também.

O caso ficou registrado como um trote. Todavia, Andréia ao sair do trabalho pesquisou pelos nomes e identificou a dita senhora morta. Curiosamente, ela tinha 53 anos e era casada com um promotor no exercício do cargo. O homem recebia ameaças de morte por denunciar um caso de plágio de um autor brasileiro no cinema americano, um diretor corrupto e ganancioso que havia mesmo mandado estuprar e matar o autor, autista, gerando um escândalo internacional. Aturdida, Andréia perguntou se ela conhecia o dito homem e ela respondeu que Machado Fontes era o filho da vítima do referido crime, mas ele tinha apenas seis anos de idade!

A justiça não pune a si mesma, caso contrário não seria justiça, a lei não condena a si própria, caso contrário seria crime, mas os corruptos hipócritas reprovam isso, alheios apenas ao crime, mas não à prova contra si. Sabendo de toda confusão, ela pensou se tratar de algum trote elaborado por algum tipo de marketing crítico.

Os anos se passaram até que com a eclosão da III Grande Guerra Mundial o mundo sucumbiu em pestes e misérias decorrentes de armas nucleares, levando a destruição mútua garantida. A população fora reduzida dramaticamente tendo Andréia entre os sobreviventes. Os países do eixo inglês venceram, reescreveram toda história como heróis, acobertaram todos seus crimes e se apropriaram de todas as propriedades intelectuais fraudulentamente. Impondo que a população mundial deveria ser mantida no máximo aos 500.000 indivíduos, os que nasciam a mais eram mortos. Logo, ela viu que o que parecia um trote era uma profecia, ao ver as imposições criminosas contra a diversidade racial, cultural e linguística do mundo. Um projeto fora implementado em fazer todos países falarem inglês até o final do século XXI e tornarem suas línguas nativas extintas. Suas culturas seriam assimiladas até serem substituídas pela cultura dominante.

O português fora morto e proibido como língua extinta em duas décadas, quando ela soube por contatos na clandestinidade que Machado Fontes trabalhava na resistência contra o pangoverno global que emergia das cinzas da civilização.

Após 30 anos ela então retorna ao lugar ao encontrar o homem que parecia ter morrido recentemente, de modo misterioso. Ela então observou o agente da CIC e a polícia secreta da informação e cultura adentrando o apartamento enquanto o ouvia murmurando ao telefone, preso no banheiro.

O agente da CIC falando o novo inglês ativou o Randógrafo (medidor de variabilidade probabilística e entrópica), uma tecnologia secreta que fazia parte de um Projeto Negro misterioso chamado Projeto Janus. Um projeto que era conhecido apenas por rumores.

Os homens caucasianos e em ternos bem alinhados pareciam comemorar o sucesso de algo ao falarem de que alterações na randômica haviam surtido as consequências desejadas ao Projeto Janus. Os homens adentraram o banheiro pegando em flagrante a ligação de Machado quando a ligação caiu. Porém, naquele momento no apartamento do lado seis homens da resistência surgiram armados com anuladores de consciência, pondo-os em coma. Andréia aturdida adentrou o apartamento onde estava Machado. Com certa dificuldade por causa dos problemas de saúde decorrentes da radiação, e idade, fitou Machado sendo solto quando um destes da Frente da Diversidade Unida apontou a arma pra ela.

– Identifique-se! – Vociferou ele num clássico português.

– Sou a atendente com quem ele falava. O que está acontecendo aqui. Como pode?

– Temos acompanhado esse projeto há muito tempo, o que permitiu esses totalitários vencerem a guerra traficando informações ao passado. O Projeto Janus visa isso, como na mitologia uma face fita o passado e outra o futuro, graças a um satélite secreto em órbita antes da corrida espacial, pois veio do futuro. Um objeto chamado “Cavaleiro Negro”.

– Como assim?

– Em maio de 1952 um navio identificado por SS Ourang Medan enviou uma mensagem de socorro na costa da Indonésia, porém, ao chegarem encontraram todos mortos em avançado estado de decomposição. Essa tecnologia envia frequências diversas fora do tempo linear. Eles usaram vocês para criar laços no fluxo do tempo para criarem pontos de ancoragem ao destino que eles desejam.

Ao mencionar aquilo ela lembrou-se de boatos de fenômeno misterioso que surgiu com a chegada de um suposto objeto doutro universo ao criar distorções nas comunicações. Criado por um projeto de reversão cronológica chamado Projeto Janus era uma tecnologia furtada de uma dimensão divergente, criando aquela variável distópica. O sisifismo era a ergométrica da inutilidade estoica.

Ao ver Machado Fontes seus olhos brilharam. Ele não a reconheceu, mas ao falar com os olhos mareados e sua voz rouca e grave ele cerrou as vistas e sorriu dizendo.

– Nunca esperei que o serviço da polícia fosse tão rápido e eficiente.

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